quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A noite é uma criança (6)

As férias vieram e foram, este ano, impregnadas de um cheiro intenso a liberdade, a tempo indeterminado e a horizontes infindáveis. Carregando pequenos luxos que criaram o paraíso, sem esquecer os leves dissabores que bem as caracterizam - não há doce, sem saborearmos antes um pouco do amargo. E os sentidos sendo intensamente despertos: o sal do mar mesclando-se no mel de lábios e o melífluo marulhar espraiando-se sobre as inúmeras texturas de areia, num hino à preguiça de um dia após o outro, tornando-os, no seu conjunto, únicos, mágicos e impagáveis... 
Boas férias! Que tenham sido, estejam ou ainda venham a ser do melhor!

O estalar repetiu-se novamente, mais próximo. A sua respiração não se alterou. Silenciosamente, pegou no cabo do punhal e trouxe-o para a ausência do luar. Nessa altura sentiu o chão estremecer, ao mesmo tempo que o ar pesado à sua volta vibrou com o ressoar de ferro a ser arrastado. Um som abafado, que parecia vir debaixo dos seus pés e que conseguiu agitar a sua alma imperturbável.
Depois, silêncio... Era como se a noite tivesse congelado e a sua balada sido banida da face da terra. Até os grilos e os mochos emudeceram.
Ariadne manteve-se imóvel, camuflando-se contra a parede escura e envelhecida do alpendre. Escutou as batidas do seu coração regressarem ao compasso normal e sentiu o sangue fluir, de novo, ordenadamente debaixo da sua pele, mesmo quando voltou a distinguir o estalido de galhos secos ao longo do jardim, desta vez mais distante. O que quer que se aproximara, afastava-se agora, alertado com a presença de algo mais do que tinha previsto.
Mais ansiosa do que nunca permitiu a si própria, forçou-se a aguardar por algum sinal. Estava impressionada consigo mesma. Já não lhe interessava quem reclamara a sua presença, a meio da noite, na ala mais recatada do palácio, depois da ala arruinada. Conseguia delimitar os seus destroços, de onde estava posicionada, uma massa disforme a arranhar o céu sombrio.
Cada mistério a seu tempo, pensou. E esperou... Mas foi com deceção que mais nada viu acontecer durante os longos minutos que se sucederam. Ao final do que lhe pareceu um tempo interminável, decidiu, então, abandonar o seu posto.
Notou que as suas pernas estavam trôpegas, ao cambalear até à janela. No entanto, não se sentia vencida. Logo pela manhã, que não demoraria muito a chegar, procuraria saber mais sobre as galerias subterrâneas do palácio. Sabia que existiam, embora desconhecesse tudo acerca delas.
Entretanto, estaria atenta...

terça-feira, 24 de julho de 2012

A noite é uma criança (5)

Tabor apoiou as mãos na parede e espreitou para o interior da passagem. Não conseguiu vislumbrar um palmo em diante de tão escuro que estava, não tendo outra alternativa senão prosseguir às cegas, tateando a viscosidade repugnante que se colava à pedra.
Ao mesmo tempo considerou a hipótese de, a qualquer momento, deixar de existir folga de ar se o escoadouro ficasse completamente submerso. Era um cenário sinistro, na verdade! Felizmente que a largura do buraco era mais ou menos a mesma que a do seu corpo, o que lhe dava algum sentido de segurança pois assim seria mais difícil deixar escapar eventuais bifurcações que pudessem existir.
Prosseguiu lentamente, movendo as águas com dificuldade. Com o tempo habituou-se ao cheiro pestilento, mas não conseguia ignorar a frequência com que algo embatia nas suas pernas e que seguia curso atrás de si. Apesar de muito súbtil, era evidente o sentido da corrente na sua direção.
Sentia-se ansioso por ar fresco e também por luz! Perdera, por completo, a noção do tempo e, por pouco, o sentido de orientação. O canal não seguira em frente, como devia ter calculado, mas pelo menos não tinha havido desvios múltiplos e o nível da água baixara francamente. Se não se tinha enganado em nenhuma altura, tinha virado à esquerda e depois à direita, quando sentiu que deixara de seguir em linha reta, curvando ligeiramente no sentido nordeste, achava ele... Já devia ter atravessado as muralhas há muito tempo, seguindo agora para o pátio exterior ou, quem sabe, para o interior do próprio palácio!
Ouviu, então, o som de água a cair. Um gotejar espesso que ecoava à sua volta. Quase instantaneamente, bateu com o pé em algo duro, e que identificou de imediato como sendo uma parede. Parecia que chegara a um beco sem saída.
Tabor estava confuso. Não tinha chegado até ali para nada! E ainda havia a questão do som da água a cair por resolver...
Percorreu com as mãos toda a extensão da parede à sua frente e as laterais, procurando a origem do escoamento. Foi no teto que descobriu uma espécie de grelha, por onde podia enfiar-se tendo em conta o tamanho do buraco. Empurrou-a, embora com pouca fé, e surpreendeu-se quando sentiu a grade ceder uns milímetros. Mais animado forçou-a com vários movimentos bruscos, conseguindo finalmente que esta se soltasse.
O estrondo ecoou por todo o lado, sobre a sua cabeça, deixando-o, de certa forma, inquieto. Só depois de alguns minutos na expetativa é que achou seguro empoleirar-se pelos braços e elevar-se pela abertura.
Lá em cima continuava escuro como breu, mas sentia que a galeria era agora bem maior, a julgar pela amplitude do eco que se propagava.

Sabem uma coisa? Estou completamente perdida! Depois de arejar um pouco voltarei para tirar o Tabor desta embrulhada...

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O lago

Ouvia a música das cotovias enquanto os seus passos soavam secos na ponte sobre o lago. Os reflexos da água moviam-se ao longo do caminho, através das suas vestes claras, esbatendo-se no seu rosto e olhar profundo.
Chegou ao arco sob a imensa copa de um carvalho e parou, escutando o seu coração mudo e ignorando o cair das folhas à sua volta. Sentou-se no muro baixo à beira de uma suave cascata e permitiu-se absorver a melancolia do Outono. O Verão tinha sido tudo menos leve, levando consigo as esperanças que ela reunira com o florir das margaridas, no pátio da sua casa.
Tinha acabado de fazer dezasseis anos. Não era mais nenhuma criança, mas ninguém a tratava de outra maneira. Na verdade, queria ser como as suas irmãs e ter tantos pretendentes quanto os pequenos peixes que observava nadarem de um lado para o outro, debaixo dos seus pés.
Não herdara a beleza da sua mãe, mas o seu pai elogiava-a pela sua bondade. Quando o fazia, via-o entristecer-se e, logo em seguida, afastar-se. Isso magoava-a, apesar de sentir a dor dele como se fosse sua. Ela nunca conhecera a mãe...
As irmãs tinham os olhos verdes, mas os dela eram de um castanho escuro. A sua cabeleira ruiva não era tão longa e brilhante, pelo que na maioria das vezes usava-a enrolada num carrapito. Não sabia andar com graça ou lançar um sorriso atraente e odiava o seu rosto pálido salpicado de sardas, que lhe davam um ar infantil.
Suspirando como se exilasse um grande peso vindo de dentro, fez um gesto para arremessar uma pedrita ao lago, mas ficou de braço suspenso no ar ao reparar numa pequena embarcação branca que vinha na sua direção. Uma misteriosa neblina avançava na retaguarda.
À medida que o barco se aproximava, conseguiu ver que não trazia ninguém, navegando livremente e sem rumo, sabia-se lá há quanto tempo. Levantou-se e colocou-se de pé sobre o muro. Esperou que este passasse debaixo dela e, com um impulso, saltou lá para dentro. Sabia que este era um dos motivos pelo qual nunca a levavam a sério...
A embarcação balançou sobre a água, mas conseguiu equilibrar-se. Reparou, então, que não havia remos, nem sequer sinais de alguma vez ter transportado alguém. Uma sensação estranha invadiu-a, especialmente quando as brumas a engoliram e se adensaram em torno de si própria.
Rapidamente deixou de conseguir ver a ponte, o lago e as suas margens, e o som da queda de água, do chilrear e da brisa que desfolhava as árvores foi lentamente abafado até desaparecer. O silêncio tornou-se esmagador e uma dor de cabeça lancinante forçou-a a fechar os olhos até as suas forças se esvaírem e ela cair desmaiada como uma pedra lançada ao lago...

terça-feira, 17 de julho de 2012

A noite é uma criança (4)


Demorou cerca de duas horas até chegar junto dos portões. Estava muito frio, mas só quando se viu tão perto do negrume daquela estrutura é que sentiu o corpo arrepiar-se. Mais próximo do que tinha previsto, percebeu o movimento de um guarda, apenas. Felizmente que este parecia estar muito relaxado, para não dizer distraído. Pensou que não era hábito acontecer muita coisa por ali, o que não o surpreendeu...
Recolheu-se nos arbustos despidos de folhagem. Por um lado, deu graças pela lua não ter aparecido, mas por outro, estava inquieto. Não era bom presságio quando na noite anterior tinha estado lua cheia.
Tinha ouvido falar de algumas incoerências e ambiguidades em relação àquele sítio, histórias nebulosas e de deixar os cabelos em pé, especialmente desde que ocorrera a queda daquela ala do palácio.
Perguntou-se sobre o que acontecera depois disso. Das histórias que ouvira restavam agora meros fragmentos, não só porque ele era novo quando as conheceu, mas também porque ninguém tinha certezas de nada. Provavelmente muito do que ouvira tinham sido especulações, resultado da imaginação e fantasia de quem as contava, e depois de quem as ouvia para as reproduzir ao seu jeito. Lembrava-se de uma sombra de algo nas ruínas, um padrão que se repetia todos os anos no aniversário da princesa, crianças que desapareciam, homens que partiam para não voltar e mulheres abandonadas que votaram a sua vida ao esquecimento... Tabor também tinha dúvidas sobre se seriam memórias ou criações do seu próprio espírito inventivo nas várias madrugadas que se seguiram. Mas depois de aqui chegar, e de se deparar com um reino que parecia não existir, deixou de saber o que pensar.
O palácio estava muito exposto. Só conseguira ali chegar sem ser visto pelas condições do céu noturno e, aparentemente, pela escassa guarda real, mas não queria arriscar contornar as muralhas pois a vegetação terminava junto da vala pedregosa em redor e os terrenos além dela pareciam inóspitos e demasiado descobertos.
Estava a sondar as possibilidades que tinha quando ouviu um bater de asas e viu um corvo, tão negro quanto aquela estranha noite, esvoaçar sobre as elevadas paredes e desaparecer. À medida que seguia o voo selvagem da ave, o seu olhar decaiu mais abaixo, à altura da superfície das águas da vala, e distinguiu uma sombra mais escura que a escuridão da pedra.
O fosso era estreito e ele estava suficientemente perto para se sentir nauseado pelo cheiro das águas paradas à demasiado tempo, pelo que ainda conseguiu diferenciar, uns bons palmos acima, as marcas anteriores do nível normal, e percebeu que estavam agora muito abaixo dele. Tabor já tinha dado conta do período de seca que aquela região atravessava pelo leito do rio que descia a encosta a Oeste. As chuvas e as neves que em breve viriam seriam muito bem vindas, embora ainda não soubesse por quem...
Voltou o seu pensamento para a mancha escura que tinha acabado de detetar. Tinha uma ideia sobre o que poderia ser, mas para confirmar teria que descer o fosso e entrar naquelas águas sombrias. A imagem enregelava-o ainda mais, e não era só por considerar a sua baixa temperatura. Afinal não é que tivesse outra alternativa, a menos que quisesse regressar, o que estava longe de ser uma opção!
Agachou-se até ficar estendido no chão e arrastou-se silenciosamente até o terreno inclinar-se sobre o fosso. Chegado aí, colocou-se na vertical e foi descendo, apoiando os pés e as mãos nos socalcos que foi encontrando. Não foi tarefa difícil porque o fosso não era muito íngreme, mas assustava-o a ideia de alguma pedra resvalar, denunciando-o. Teve sorte...
Um dos seus pés mergulhou, então, na água. Não tinha sequer chegado perto da realidade sobre quão gelada estava, e também da sua viscosidade. Sentiu repulsa a ponto de vomitar, mas conseguiu conter-se. O que via de positivo nisso era talvez o som abafado ao mover-se.
Desejou não ter mais surpresas, fossem quais fossem, e afastou do pensamento a ideia de um bicho qualquer que o puxasse para as profundezas do fosso, mas rapidamente percebeu que o nível das águas dava-lhe pela altura do peito. Mais uma vez pensou que as defesas do palácio estavam muito lassas, mas ao mesmo tempo também especulou sobre a necessidade delas existirem. Viveria algum mal terrífico dentro daquelas paredes?
Finalmente, chegou à muralha. Olhando debaixo para cima concluiu que era vertiginosa! Sentiu-se muito pequeno e submisso, como quando estava no sopé da colina a admirar a silhueta do palácio em contraluz, mas ao verificar que afinal estava certo quanto à origem daquela sombra escura na base da muralha, sentiu também uma ponta de excitação duvidosa. Ali estava, diante dele, o seu bilhete de entrada para uma aventura de onde podia não regressar...

segunda-feira, 9 de julho de 2012

A noite é uma criança (3)


O seu nome era Tabor e ouvira falar sobre ela há muito tempo atrás, ainda ambos eram crianças. Uma princesa que nascera num país distante, o último a Norte antes das Terras Geladas, na noite mais curta e gelada do ano, ao mesmo tempo que acontecia uma terrível tempestade que devastara parte do reino e arruinara completamente toda a ala nordeste do palácio que, por motivos desconhecidos, ficara vedada desde então.
O que a tornava especial e distinta de todas as outras raparigas, para além do berço real, era a sua beleza crua e inigualável. Era a única filha de um rei sem rainha, desde que a sua esposa definhara no leito decorrente de uma doença forasteira. A partir desse desolado acontecimento, o rei enclausurara-se na sua dor e Ariadne crescera sem pai e sem mãe, apenas com várias aias à sua volta para suprir todas as suas necessidades e vontades, tornando-a numa pessoa fria e aparentemente sem coração.
Quando Tabor atingiu a idade adulta, partiu sem dar justificações. Não tinha pais, apenas um tio muito afastado que nunca lhe dera muita importância. Assim, numa madrugada aleatória, deixou o deserto em busca das histórias que o embalaram nas noites quentes, sob as estrelas, muitos anos antes. Contos que o deixaram acordado muitas delas a imaginar a beleza incomparável de uma rapariga que ainda nem era uma mulher e já deixava muitos homens a falar.
Mas nem tudo era em bonança... Havia um lado sombrio dessas histórias, e que ninguém nunca soubera desbravar adequadamente. Descreviam uma beleza negra intocável, capaz de aniquilar a alma humana. Depois, as vozes emudeciam, deixando cair no esquecimento as outras que se levantavam timidamente para colocar algumas questões: "como?", "e mais?"... Alguém suspirava, vultos acomodavam-se nas suas peles e pouco tempo depois ouviam-se os roncos de quem caía no sono.
Até que as histórias deixaram se ser contadas e o povo esqueceu-as. Tabor ficou sem saber se tinham sido produto da imaginação de alguém, mas ele imortalizara a imagem dela e nunca foi capaz de a esquecer...
A incrível jornada que empreendera foi longa. Muitas luas passaram, viu e sentiu as estações mudarem até voltarem a ficar menos percetíveis, com a diferença de que os dias e as noites eram mais gelados do que no seu país. Atravessou dunas, comeu o pó dos trilhos, embrenhou-se nos perigos das florestas, percorrendo a maior parte do caminho em solidão, ele e os animais, até chegar a povoações onde não se permitiu demorar muito tempo. Fez as perguntas que tinha a fazer, sem se alongar em detalhes. Teve ofertas para passar as noites acompanhado, algumas que recusou, outras não, mas no fundo nunca deixara de se sentir ausente, partindo na maioria das vezes enquanto todas elas ainda dormiam, para conhecer novas terras, novas gentes e novas mulheres, e para partir novamente, uma e outra vez.
Os dias já se notavam mais curtos, e foi numa das poucas manhãs solarengas, próximo do fim da sua aventura, que viu o palácio reluzir ao longe, no topo de uma colina que se preparava para receber as neves da próxima estação. Um pequeno bosque empobrecido flanqueava as suas muralhas e, por detrás, viam-se as crinas alvas de uma montanha que fazia fronteira com as Terras Geladas, onde poucos se aventuravam pela rigorosidade do Inverno permanente e das suas tempestades.
As histórias eram, então, verdadeiras! - pensou, em voz alta.
Admirou as paredes e as torres altas do palácio, os arcos, as abóbodas, os telhados e as varandas. Arquitetura simples mas pretensiosa, até o seu olhar cair nas ruínas a nordeste, o que deduziu ser a ala que ficara destruída quase duas décadas antes.
Deixou-se ali ficar o resto do dia, numa pequena clareira junto a um braço do rio, até anoitecer. Quando a lua apareceu decidiu-se a pegar nos seus parcos pertences e avançou como uma sombra junto ao arvoredo, que ia ficando cada vez mais rasteiro, e que ladeava uma planície até ao sopé da colina onde se edificava o palácio.
Aquele cenário não fazia sentido, a começar por não haver reinado ou cidade ou coisa alguma sobre que reinar...

sexta-feira, 22 de junho de 2012

A noite é uma criança (2)


Ela era uma princesa da noite e vivia num antigo palácio na encosta de uma colina. O seu destino para todas as madrugadas era um alpendre abobadado, cujas paredes revestiam-se de murais esbatidos pelo tempo.
Depois de todos na casa se recolherem para os seus aposentos, incluindo as aias que dormiam no quarto ao lado, Ariadne levantava-se da sua cama e escapava-se para os corredores silenciosos, percorrendo-os, sempre com a graciosidade com que era conhecida, até à grande janela que emoldurava toda a parede a sul.
Conhecia todas as formas de brisa noturna que a envolviam quando abria os vidros e pisava as lajes do chão com os seus pés descalços. E encostada ao gradil florido, sustentado por colunas tão lisas quanto os seus dias eram monótonos, envergando uma fina capa de tecido sobre o seu corpo esguio, permitia ao luar curvar-se perante o seu encanto gelado...

Numa dessas noites, a lua não apareceu, escurecendo tudo em redor. O céu parecia limpo e as estrelas cintilavam como em todas as noites ancestrais.
Daquela única vez, Ariadne trazia um punhal à cintura e aguardava pacientemente recolhida nas sombras do alpendre.
Esperou até escutar o som de um galho a quebrar no jardim, próximo dali, e, instintivamente, tocou na lâmina por baixo das suas vestes. Nunca a tinha utilizado. Não sentia medo. Não sentia coisa alguma... Chamavam-lhe A Princesa da Noite, fria e dura como eram as noites no Norte. Os seus olhos negros eram glaciais e implacáveis, forçando cada homem ou mulher que a enfrentasse a subjugar-se a ela. Não havia nada que não fosse feito à sua vontade.
Ao final da tarde daquele dia, ao mesmo tempo que os raios dourados do sol se escapavam do prado, recebera uma visita na varanda da janela do seu quarto. Sentada numa cadeira, diante do seu reflexo imparcial, viu chegar um corvo, pousando no peitoril e virando os olhos inquietos na direção dela. Ao aproximar-se viu que a ave não fugira, enfrentando e igualando a escuridão do seu olhar. Duas criaturas da noite, tão longe do lugar onde pertenciam...
Quando abriu a portada percebeu que trazia um bilhete preso numa das patas. Levantou a mão, devagar, e a ave voou inesperadamente para o seu braço. Depois de a deixar desatar o papel da sua pata, o corvo levantou novamente voo, não sobre as árvores, mas embrenhando-se nas suas ramagens. Por momentos, parece-lha que esta afrouxara o voo como se fosse deter-se sobre algo, ou alguém...
Olhava agora para o bilhete que tinha desenrolado entre os seus dedos, cuja mensagem era apenas um local e hora.
E ali estava ela, como em todas as noites e como em nenhuma delas, à espera, aconchegando-se no gume do seu punhal de encontro às suas coxas...

quarta-feira, 20 de junho de 2012

A noite é uma criança


Ela era uma princesa da noite e vivia num antigo palácio na encosta de uma colina. O seu destino para todas as madrugadas era um alpendre abobadado, cujas paredes revestiam-se de murais esbatidos pelo tempo.
Depois de todos na casa se recolherem para os seus aposentos, incluindo as aias que dormiam no quarto ao lado, Ariadne levantava-se da sua cama e escapava-se para os corredores silenciosos, percorrendo-os, sempre com a graciosidade com que era conhecida, até à grande janela que emoldurava toda a parede a sul.
Conhecia todas as formas de brisa noturna que a envolviam quando abria os vidros e pisava as lajes do chão com os seus pés descalços. E encostada ao gradil florido, sustentado por colunas tão lisas quanto os seus dias eram monótonos, envergando uma fina capa de tecido sobre o seu corpo esguio, permitia ao luar curvar-se perante o seu encanto gelado...

Há dias e alturas na vida para as quais o tempo corre através dos nossos dedos, e as histórias aparecem como fragmentos, aspirando algo mais. 
Os meus filhos tiveram as suas festas de fim de ano na escola e, em breve, comemoram ambos o seu aniversário. E, apesar das poucas horas que dediquei à escrita, o que me conforta e me realiza a 100% é que tenho estado sempre junto deles, assistindo dos melhores lugares, e também dos bastidores, o que me faz uma mãe afortunada.
Há tempo para tudo na vida...

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Fragmentos medievais

As ondas rebentavam contra o casco, salpicando a amurada da embarcação. O vento estivera a favor, facilitando a navegação, o que lhes deu algumas horas de avanço. Dali, conseguia ver a costa entrecortada por falésias que o mar esculpira ao longo dos séculos. Para trás, a terra estendia-se por campos rasteiros, sem se distinguir nenhum vale ou elevação, até cair novamente no oceano.
Também ele tinha sonhado, visões que estava cada vez mais perto de entender...

A música animava o acampamento, sendo quase impossível resistir-lhe. A noite estava quente e o ambiente era alegre. Homens, mulheres, os mais velhos e os mais novos saltavam sobre a relva, uns com ritmo, outros desordenadamente; estes erguiam as canecas de cerveja entornando mais do que conseguiam beber. Ninguém estava atento o suficiente para se aperceber daqueles que não compareceram na dança de grupo, para se encontrarem na última tenda...

Algo na floresta despertara, apesar da noite estar bem avançada. O luar penetrava através das árvores centenárias, propagando o seu brilho no tapete de musgo onde ambos se deitavam. As nascentes murmuravam, um grilo cantava próximo dali e os galhos estalavam, num e noutro momento. E por detrás de um arbusto, confundindo-se com as sombras da madrugada, um ser ainda mais antigo vigiava, protegendo a serenidade do bosque, acalmando-o com o seu olhar celeste e a delicadeza do seu semblante...

Atirada contra a parede fria dos subterrâneos da fortaleza, embrenhada na escuridão, ela pensou pela primeira vez nos pais. O que estariam eles a fazer? Provavelmente a sua mãe tricotava sentada no alpendre, por vezes perdendo o olhar vazio no vasto oceano em diante, e o seu pai... o seu pai estaria à procura, agora não de um, mas de dois filhos. Não imaginava a desolação do destino que lhes tinha causado, e do seu próprio dali por instantes. Já ouvia o eco das correntes e dos pesados passos no corredor, cada vez mais e mais nítido...

O ressoar do chifre lançou-se sobre a planície como um trovão, marcando o início da guerra no crepúsculo. Os cavalos esperavam ansiosos no topo da colina. Num deles, montava Tenemur, e ao seu lado, como sempre, estava o seu companheiro e fiel amigo de todos os tempos, Wolfric. Podia ver-lhe a tez incendiada pela ânsia da batalha por travar e por fazer desabar o seu pesado machado sobre quem se lhe atravessasse no caminho. Devia-lhe a vida, mais do que uma vez, e em breve talvez tivesse a oportunidade de pagar a sua dívida. Se os céus o permitissem, ou o próprio Wolfric...

O seu vestido irradiava chamas de cor, rodopiando sobre o estrado, descobrindo um pedaço de pele aqui e ali, os cabelos sacudindo sobre o rosto e os braços, que alçava com alguma provocação entre olhares despidos de pretextos. Fazia tanto tempo que não a via sorrir, mordendo ligeiramente os lábios rosados na sua direção. Desejava-a todos os dias, e aquela noite não era exceção...

O que eu escolhi desta vez, foi algo bem mais desordenado. Já não faltavam os contos soltos... Escrevi com o coração, com maior ou menor sentido, ao ritmo de uma coletânea de músicas celtas, que definiram o conteúdo dos parágrafos despegados que aqui estão. Nem tão pouco estão com a revisão feita, por isso perdoem as incorreções. O que eu sentia falta desta liberdade...

quarta-feira, 30 de maio de 2012

No fim do mundo

Kaya vivia no topo de um penhasco, sobre as cristas do mar azul. Naquela zona, o vento chicoteava as praias desertas, os rochedos escarpados e as planícies agrestes, que se estendiam numa circunferência delimitada pelas águas do oceano, uivando desde o amanhecer até de madrugada. Uma ou outra casa despontavam nos campos secos, todas semelhantes entre si, e a parca vegetação que se atrevia a crescer neles resistia aos vendavais e às tempestades que, com frequência, assomavam a região. Não havia muito mais naquele fim de mundo.
Todos os dias, sem exceção, Kaya passava o final de cada tarde debruçada sobre a imensidão que a rodeava, alta e hirta. Determinada a aguardar por algo ou alguém que a levasse para longe, dedicava-se a reviver os seus sonhos, um por um, enquanto o sol se deitava no horizonte e o entardecer lhe gelava a alma.
Não sabia que tipo de embarcação esperar, mas sabia que o seu bilhete de saída viria do mar. Era o que lhe diziam os sonhos, todas as noites, acordando-a para só voltar a adormecer quando o céu se tingia de um tom mais claro. Pouco tempo depois vinha a sua mãe para a despertar.
Quando partisse, os seus pais iriam ficar completamente sós. O seu único irmão tinha desaparecido muitos anos antes, mergulhando no abismo durante uma brincadeira mortal na falésia. O seu pai nunca recuperara da dor, ainda se lançando frequentemente no mar picado dentro de um bote humilde. Ela não sabia o que podia ele estar à procura, depois de todos aqueles anos, mas nunca se atrevera a perguntar. Na verdade, não havia muito que se dissesse ou ouvisse naquela casa, sendo que qualquer tentativa de diálogo caía rapidamente no silêncio, quebrado apenas pelo tilintar da loiça que a mãe se aprontava a arrumar, apesar de nunca haver nada fora do sítio.
Fazia algum tempo que ela soubera que iria partir. Foi quando os seus sonhos começaram, iluminando a única saída possível. Não havia mais nada para ela ali, a não ser um buraco sem fim que a oprimia. Não queria dizer que esta decisão não a magoasse, mas todos os dias já lhe doía a ausência de tudo...
Contemplava, então, as ondas bravias com o verde baço dos seus olhos, que também haviam perdido o brilho, à espera daqueles olhos que tinham voltado a acentuar o azul do mar, dos revoltos cabelos pretos, dos lábios molhados e salgados e daquele abraço compacto onde sentira o seu corpo docemente esmagado sobre o chão áspero do casco do barco. Continuava à espera de tudo aquilo outra vez, desde aquela primeira noite, há catorze luas atrás...

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Murmúrios da vila

O meu dia começou ali, naquele instante. Não usava relógio, mas o sol dizia-me que eram perto das cinco da tarde. Na verdade, eu não sei interpretar o horário do sol, mas guiei-me pela sombra do palácio, em pleno mês de Agosto, já que o local me era bem familiar.
As silhuetas avançavam ao longo das ruas sinuosas, tricotando caminho como se tivessem todo o tempo do mundo, avançando e retrocedendo, hesitando diante de um mapa e apontando o dedo para vários lugares ao mesmo tempo.
As minúsculas partículas de vidro incrustadas nos caminhos deixaram de refletir a luz, mas ninguém deu por isso, a não ser eu. Ainda era cedo, mas o sol já iniciara o seu lento e secreto percurso de fuga, enquanto dezenas de pessoas inundavam a praça central, igual a todos os dias.
Sorvi lentamente o cigarro, retendo a voluta de fumo até lacrimejar. Então, soltei-a, contemplando a imagem distorcida pela cortina trémula que ameaçava brotar dos meus olhos, moldando-se e trasformando-se numa massa duvidosa e indefinida, até a minha visão voltar ao normal. Esbocei uma careta de repreensão. Devia deixar de fumar, se é que valia a pena...
Entre os meus dedos, a coluna de cinza ameaçava tombar. Juntei-lhe o peso ambíguo da minha consciência e não resistiu muito mais. Por fim, atirei o cigarro ao chão e amachuquei-o nas lajes da ladeira que conduzia às traseiras do palácio.
Apesar de toda a azáfama diária da vila, naquele momento, Sintra ainda se entorpecia entre sonhos ancestrais. De noite é que velava a lua, ou a ausência dela, e todos os mistérios que se imiscuíam nas sombras. Normalmente, eu fazia parte, quando começassem os murmúrios...
Demorei-me um pouco mais na minha ociosidade, projetando, sem querer, a mente para trás.
Em diante, a serra elevava-se num terreno acidentado até à haste da bandeira. Lembrei-me do profundo prazer ao soerguer-me uma tarde sobre a varanda de um rochedo, lavado em suor, escutando-a sacudir ao vento. Detinha o mundo a meus pés, debaixo de uma chuva miudinha que fingia as lágrimas nos meus olhos, e nesse dia o meu espírito magoado e revolto encontrara um rumo mais apaziguado. Daí para a frente, trepar aquela encosta íngreme passou a fazer parte de um processo de cicatrização que infligi a mim mesmo.
Assim que os sinos tocaram confirmando as horas, apeei caminho. Desta vez, não havia lugar nem hora marcada, embora hora nunca tivesse havido.
Em breve, os telhados cobrir-se-iam de ouro e das janelas abertas seriam desvendados a pouco e pouco os fragmentos da história de cada família, menos a minha. A minha estrada é a mais vazia e solitária de todas...

Este é um texto que encontrei durante as arrumações da semana passada e que escrevi há cerca de uns sete ou oito anos. No entanto, não resisti a dar-lhe um tratamento ao transcrevê-lo para aqui. 

terça-feira, 15 de maio de 2012

No pântano mal-amado (3)

Quanto mais sentia o pulsar crescer nas paredes do interior da árvore, também a névoa que invadira seus pensamentos se dissipava permitindo-lhe ver mais claramente.
Levantou-se no escuro. Só agora entendia o que se tinha passado e deixava-se tomar pela apreensão. Tacteou o chão frio procurando não esbarrar em nada. Se fosse silencioso, talvez conseguisse escapar sem ser notado.
Até ali tudo bem. Chegado à porta, encostou nela o ouvido e esperou. Não escutou nada para além do esgravatar na madeira. Duvidava quantos e que tipo de animais invisíveis viviam dentro daquelas paredes mofadas e debaixo do chão empoeirado, e era preferível que assim se mantivesse.
Entreabriu a porta, que chiou baixinho. Empurrou-a, lentamente, espreitando. A porta da rua estava aberta deixando o luar entrar, hesitante. Isso nunca acontecia, mas ele desconhecia. Naquela noite, a lua lançava um brilho refulgente fora do normal, unindo-se aos elementos que trabalhavam com um único propósito. Sentiu uma leve brisa tocar o ar pesado e distinguiu lá fora um gotejar lento como se as águas mórbidas do pântano finalmente se movessem. Conseguia ouvir o batimento da antiga árvore, e o da terra também, dentro de si, fundindo-se nele com se fossem um só, crescendo como uma labareda.
Até que uma voz esganiçada cortou o ar e abalou o fogo dentro dele.
- Os meus amiguinhos não te deixam dormir? Posso tratar deles, se quiseres. Eu posso ser muito convincente, por vezes!
A criatura nojenta e esquisita aparecera, repentinamente, à sua frente, sem ele ter percebido como. Parecia ter dois buracos negros no lugar dos olhos, que emitiam um brilho sombrio àquela luz, e pareceu-lhe novamente que ficavam maiores. Tentou resistir, procurando a voz da terra, da árvore e das águas lamacentas. Sentiu os pensamentos tornarem-se de novo prisioneiros, mas agora também a lua se apoderava dele, chamando-o para a luz.
Puxou-se das trevas e perguntou:
- Quem és tu?
O duende riu-se como um tolo, andando de um lado para o outro, rondando-o e tentando atravessá-lo com o olhar afiado sempre que encontrava uma oportunidade. Algo o estava a deixar inquieto.
- Ogru, é como me chamam. Sou uma criatura da terra e da noite e vivo neste pântano há mais tempo do que me é possível recordar. Queres que faça mais chá? Não recebo visitas muitas vezes, o que me faz um tanto indelicado... - a voz dele tinha tantas entoações como a de um oportunista, esforçando-se por o confundir e ludibriar. Mas algo estava terrivelmente errado, pensava o duende malvado. Desta vez, estava a ser difícil! Quanto mais arremessava a sua mente na dele para a dominar, recuava em ricochete. E aquele barulho ensurdecedor... Tum-tum-tum-Tum-TUM-TUM! Os seus ouvidos... contorcia-se de dor! "Pára!" - gritava, silenciosamente.
- Não quero o teu chá! - bradou o rapaz, determinado. - És uma criatura das trevas, Ogru, e um trapaceiro! Não me voltas a enganar com os teus truques baratos.
O duende nunca tivera uma aparência agradável, nem que tentasse, mas depois de ser desafiado encarnou uma personagem ainda mais primitiva e vil. O seu corpo cresceu, os seus olhos ficaram brancos e das suas mãos nasceram garras cobertas de germes.
Ao mesmo tempo, o rasto inflamado da lua espalhava-se no chão à sua volta. Este parecia dobrar-se sobre si próprio, ondulando como as ondas do mar bravo. Então, as raízes soltaram-se, como presas indomáveis, precipitando-se contra a criatura ainda mais feia e deformada, que se defendeu ao saltar bruscamente para os lugares onde ainda reinava a penumbra.
- Recebi-te na minha casa e tu atreves-te a provocar-me e a insurgir-te contra mim? - protestou ele, no escuro. - Nada, nem ninguém, vai conseguir vencer-me e libertar-te! Mesmo que saias desta árvore maldita, o pântano será a tua masmorra. Juro por toda o mal e enfermidade que existe neste mundo! Estás muito longe de casa, criança... - a voz silenciou-se e desapareceu na escuridão.
O pó levantara-se, dificultando-lhe ver e a respirar. Não havia sinais de Ogru, mas o chão continuava a agitar-se e as paredes ameaçavam abater-se esmagando tudo o que encontrasse pelo caminho. O trilho cintilante da lua esbatia-se através do caos que se instalara e retrocedia em agonia.
Ele não sabia que lidava com poderes demasiado antigos, forças tão ancestrais e selvagens que na maioria das vezes desconheciam a razão. Agiam por impulso e emoção, comandados pelo instinto, e facilmente deixavam-se levar, propagando-se como fogo, e às vezes transformando-se nele. As suas causas não conheciam limites. Eram imprecisos e buscavam, unicamente, o equilíbrio entre todas as coisas.
Escutou uma gargalhada distante, conhecida, vibrar através da poeira. Em frente, a porta encolhia-se. Desconhecia se era a árvore que se afundava no chão ou se era a casca que se alongava para encerrar qualquer acesso para o covil do mal, e se ele não se resolvesse ficaria para sempre sepultado nas profundezas daquele tronco.
Avançou aos tropeções no chão móvel, transpondo as raízes vivas e os ramos que se recolhiam de fora para dentro como lanças afiadas cujo único desejo era enterrarem-se em carne fresca.
A entrada, ou saída conforme a perspetiva, já era pequena e não parava de reduzir. Era agora ou nunca! Inspirou todas as partículas de ar - e de pó! - que conseguiu e projetou-se com todo o ímpeto que tinha. A sua sorte foi que um braço de tronco tinha encontrado o trajeto e empurrara-o já no ar, atirando-o com a força primitiva e antepassada que se alimentava daquele lugar.
Ele aterrou com a cara no chão, do outro lado, a poucos centímetros da lama. Olhou para trás, a tempo de ver a porta encerrar-se eternamente, acorrentada por todos os séculos para trás. Depois, e finalmente, é que se deitou de barriga para cima, permitindo-se a um minuto de repouso, enquanto se inundava pelo luar brilhante, no entanto frio...

segunda-feira, 14 de maio de 2012

No pântano mal-amado (2)


Numa daquelas noites horrorosas, o duende tinha ido lá para fora sentar-se numa pedra à beira do pântano intoxicado. Tinha as suas curtas pernas estendidas ao luar, como uma criança inofensiva, e assobiava com silvos desengonçados que arranhavam o cérebro.
Estava abafado, como sempre! E cheirava a decomposição. As rãs e os sapos escondiam-se dele no baixo manto de neblina que roçava nas águas negras e lentas, cobrindo o pântano até à altura do seu pescoço. Não queriam ser o seu próximo jantar!
De repente, tudo à sua volta ficou ainda mais silencioso. O duende suspendeu a sua ária agreste e endireitou-se, chacoalhando os velhos ossos. Havia um timbre diferente no ar.
Passado pouco tempo, distinguiu um vulto cinzento ao longe, contornando um tufo alto de ervas ressequidas e seguindo pelo trilho grosseiro por onde já nunca ninguém passava.
Captou o som dos seus passos com as suas orelhas pontiagudas e sorriu com um ar travesso. Ele ouvia melhor que muitos animais!
- Uma pessoa para mim! Toda para mim... - sibilou entre dentes, como uma serpente venenosa.
Atirou-se da pedra para o chão. O salto não era grande, mas ele era muito baixinho, até para um duende. Curvado sob o peso da sua corcunda, correu, parecendo uma cepa torta, para a curva mais adiante que fazia esquina com o antro da sua casa. Ali ficou à espera, deitado debaixo de uma monstruosa raíz, o que lhe pareceu ser uma eternidade!
Até que o som dos passos ficou mais alto, misturando-se com a subtil respiração de quem já caminhava fazia tempo, e ele viu a sombra aparecer, estranhamente mais alumiada pelo luar do que ser ali alguma vez o fora. Sentiu a inveja e o desdém. Mais tarde ajustaria contas com aquela lua empertigada!
Quando o homenzinho estranho passou por cima dele, esticou o pé e deu-lhe um pontapé seco. Este tropeçou e quase jurou que ouvira uma gargalhada trocista. Admirado, olhou em volta. Viu a raíz onde julgara ter prendido o pé e para seu espanto esta parecia encolher-se humildemente. Depois, o duende saltou atrás das suas costas, sobressaltando-o mais uma vez.
Agora sim, estava assustado! À sua frente tinha um ser deveras perturbador, um rosto cheio cravado em cima de um corpo magro e viscoso. Sentiu o cheiro a peixe morto. Repelido pela imagem daquela massa disforme, olhou para os seus pés, desproporcionais ao resto da figura. E aquelas órbitas mais escuras que as águas do pântano, onde vagueava perdido há largas horas desde que enveredara por um atalho, um caminho tão sinistro que - entendia agora - só podia tê-lo guiado para um lugar tão soturno como aquele...
- Estás perdido! Este é um lugar cheio de perigos a esta hora da noite. Anda, vem comigo!
Ouviu a peculiar criatura falar através de uma voz que lhe arrepiou os cabelos. Queria recusar, mas não conseguiu. Os seus olhos pretos cresceram e atraíram-no atrás dela, seguindo-a até ao outro lado da grande árvore onde tinha esbarrado - acreditava ele, ainda...
O duende continuava a falar, aliciando-o com comida para saciar a fome e uma cama para repousar o corpo cansado. Ele tinha acabado de fazer chá e biscoitos, ouvia, uma receita assombrosa da sua avó, "que descanse sem paz!" - teria ele dito?... não... ouvira mal, com certeza!
Viu-o atirar para trás uma porta minúscula cavada no tronco, que o obrigou a dobrar-se quase até ao chão para conseguir entrar. Cheirava pior lá dentro. Viu a criatura dirigir-se a um canto e acender uma vela verde.
- Sê mal-vindo à minha casa! - ele nem percebeu... - Senta-te.
Sentou-se na cadeira que ele virara para si. Ouviu um suspiro quando se sentou, mas não sabia de onde vinha.
O duende tirou um prato sujo da pia onde colocou uns bolos pretos. Serviu-lhe um chá vermelho, que tinha um sabor esquisito. Ainda tinha o travo e a impressão na língua da penugem que sentira.
Naquele momento, tentava descansar num quarto tão pequeno e desarrumado que parecia uma despensa. Não tinha janelas, tal como em toda a casa. E depois de ter apagado a vela - arrependera-se amargamente dessa ação -, a única luz era a dos milhares e insignificantes pares de olhos dos bichos que habitavam nas rugosidades das paredes circulares.
Estranhava, não só, tudo aquilo, como o facto de ter aceite ser levado sem levantar nenhuma questão, desde o momento em que trocara o olhar com o daquele ser que parecia ter saído de um conto de terror. Sentia-se pesado e embriagado, e sabia que não tinha sido do chá, pois já se sentia assim antes de penetrar nas entranhas daquela árvore.
Mas havia mais! Algo que, juntando a toda a excentricidade do que estava a viver, iria impedi-lo de fechar os olhos e de cair num sono atormentado. Deitado sobre um pano velho e amarelado que o seu anfitrião estendera no chão coberto de pó, o seu coração batia no mesmo compasso que o pulsar que pudera distinguir quando o silêncio da madrugada se instalou. Algo se debatia dentro daquela casca intemporal, fluindo nos veios do tronco e animando gradualmente um amaldiçoado estado latente, uma tremenda força que acordava ao fim de tantos e longos anos!

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Pausa

Não tenho atualizado este blog tão assiduamente quanto gostaria, mas uma força maior impeliu-me a atrasar um pouco este projeto.
Comprometi-me a atingir uma meta até ao dia de hoje, terminar uma etapa no livro que estou a escrever. Tem tudo a ver com disciplina e método, para além de ser uma obrigação para comigo e talvez, futuramente, para com aqueles que me lêem!
Mas na próxima semana prevejo já estar mais dedicada ao Um Conto por Dia.

Obrigada! E beijinhos.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

No pântano mal-amado (a dark tale for children)

Ele era um duende detestável, que vivia numa gigantesca árvore, tão feia e estranha quanto ele. A sua pele era cinzenta e translúcida, conseguindo ver-se os ossos quebrados através dela. Os cabelos eram escassos, mas mesmo assim conseguiam desgrenhar-se uns nos outros como os pêlos no interior do nariz de uma velha bruxa. E os seus olhos eram como duas cavernas escuras sem fim, rasgadas numa montanha agreste e solitária, cheia de rugas e borbulhas sebosas.
Quando ele falava, a boca distorcia-se num esgar assustador e a sua voz arrastava-se como uma lesma pestilenta, trazendo o bafo dos dentes podres, de onde se viam pendurados os restos de carne dos ratos que comera muitos anos antes.
Levantava-se todos os dias quando o sol se punha e deitava-se ao mesmo tempo que a pobre lua, que se encolhia de agonia cada vez que era obrigada a espalhar a sua sombria luz sobre ele. Ao pequeno-almoço, ele comia as órbitas e as patas dos gafanhotos e fazia chá com as asas dos morcegos. Arrotava sempre no fim, derrubando na mesa as aranhas das suas nefastas teias, armadas entre as velas que eram feitas com a cera dos seus ouvidos.
Nunca fazia a cama, nunca arrumava a casa, nem nunca a limpava. Também nunca recebia visitas, para quê dar-se ao trabalho? Mas tinha um plano, para o caso improvável disso acontecer, que era fazer ainda mais lixo e porcaria como sinal de boas-vindas, ou má fé! Era conforme para onde ele estivesse virado, que normalmente era para o lado que fosse mais endiabrado e maléfico. Na verdade, ele tinha muitas ideias para partidas de mau gosto, mas ainda não tinha tido oportunidade de as mostrar. Pois é. Ele era uma criatura muito desagradável e ninguém no pântano apreciava a sua companhia.
Até a casa onde ele vivia, uma abominável acácia, que em tempos fora bela e majestosa, desejada por todos os carvalhos, castanheiros e até pelos cedros - tão elegantes! -, perdera a sua frescura e murchara, reduzindo-se a uma mancha grotesca no lamaçal, quando o duende deformado se mudara para dentro dela. Lembrava-se do dia em que perdera todas as suas folhas num choro lamentável e quando todas as árvores a abandonaram, afastando-se dela perante a sua repugnante imagem.
Agora não passava de um grande e retorcido tronco oco, sem alma e sem vida, cujos ramos desmaiavam na lama, inabaláveis ao vento - se ele sequer se atrevesse a voar até ali - e a todas as intempéries. Nem uma única ave noturna tinha coragem de aterrar nas suas ramagens cheias de nódulos e quistos. O próprio sol recusava-se a dar-lhe calor!
Perdera toda e qualquer esperança de voltar a vestir as suas roupas de Primavera, de dar sombra aos casais de namorados e de brilhar refulgente no topo de uma colina verdejante. Sim, porque as árvores andam, sabiam? Mas muito devagarinho, os seus passos demorando anos para elas não serem notadas.
Que trágico destino, o dela...


Do último desafio.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Prisão (3)

Ainda estava congelado de medo perante a voz sobrenatural que soara através das ramagens entrelaçadas da floresta e que, entretanto, se perdera na escuridão. Mas isso não o impediu de recuar com o pânico estampado no rosto ao ver a vegetação afastar-se como que por magia e a abrir caminho, o estritamente necessário para permitir a passagem de um indivíduo franzino.
Um mocho piou ao longe. Depois, silêncio. Absoluto.
Procurou na sua mala uma lanterna e apontou o feixe de luz para dentro do bosque, mas este era tão escuro que engolia a débil iluminação escassos metros adiante.
Ponderou as hipóteses que tinha. Concluiu que a mais sensata seria voltar para trás, pois duvidava até que fosse seguro esperar pelo amanhecer para avaliar se deveria ou não atravessar a orla da floresta. Contorná-la levaria dias. Não tinha provisões suficientes, nem sequer para regressar pelo mesmo caminho, e segundo o mapa que trazia consigo não encontraria nenhuma povoação num raio de, no mínimo, quarenta quilómetros, para qualquer uma das direções. Avançar agora parecia-lhe uma loucura desmarcada!
Pulava de plano em plano, se é que se podia chamar de estratégia a delírios e imprudências, que quase nem deu por um ponto de luz efémero a pairar vindo não sabia de onde, até se deter suspenso no ar alguns passos para dentro do cerrado, para logo, em seguida, recolher-se novamente, lenta e cadenciadamente, afastando-se da entrada.
Iria arrepender-se amargamente, pensava ele quando se atirara para puxar a sua sacola e cruzara a fronteira entre o prado e a floresta, e não demorou muito tempo, pois mal deu dois passos, em segundos os ramos das árvores estenderam-se como braços negros medonhos, bloqueando a fenda no arvoredo que estivera desimpedida momentos antes, tragando-o completamente.
Colocou a mochila às costas com dificuldade, pois o caminho era, tal como imaginara, muito apertado. Roçava nas folhas ásperas como as pedras do deserto e nos galhos rugosos que lhe pareciam inquebráveis de tão duros que eram. Os troncos das árvores eram manchas menos escuras que os ínfimos buracos de negrume que escapavam das ramagens retorcidas e exibiam nódulos e tocas disformes que lhe lembravam rostos defeituosos.
Ali não sentia calor como na vasta planície onde estivera deitado, pelo contrário, arrepiava-se com o bafo fantasmagórico que flutuava à sua volta e lhe trespassava o corpo como o gume de uma lâmina com séculos de história. Não esperava nada diferente, visto que os raios de sol eram imediatamente capturados, impedidos de entrar e iluminar o que não era digno de luz, ou de vida. Ali, o solo era sombrio, carregado e domínio do submundo, os seres não poderiam ser naturais e qualquer vida que pudesse existir seria aquela para além da morte.
Ele consolidava esta certeza à medida que avançava atrás do ponto luminoso; a lanterna tinha falhado quando o caminho se fechara atrás de si, e sabia que continuava a fechar-se enquanto andava, assim como não valia a pena mudar as pilhas, pois nada mundano era suposto funcionar ali.
Tinha a pele do rosto arranhada pelas unhas das árvores e a roupa rasgada em retalhos pelos dedos que o puxavam e tentavam prender. A toda a volta a floresta murmurava, troçando dele como aquela gargalhada que ouvira, parecia-lhe que já noutro tempo. Sentia a cabeça pesada, estava confuso e via tudo à sua volta com pouca clareza. Não sabia o que o impelia a continuar, puxando pelo seu corpo e lutando contra a perversidade daquela natureza sobrenatural.
Foi, então, atirado para o que lhe parecia ser uma enorme clareira fechada sobre si mesma. Percebeu que havia um braço de rio que se circundava a ele próprio, e que as suas águas eram pútridas e tão mortas quanto aqueles bosques. Para dentro, elevava-se um penedo cinzento e no seu cimo jazia um castelo igualmente escuro que parecia ser um prolongamento da própria rocha, mas que se elaborava à medida que crescia, composto por paredes que, em baixo, eram insipidamente despidas e, mais acima, decoradas com janelas excessivamente trabalhadas expondo um minucioso detalhe, e coroado por inúmeras torres pontiagudas.
Não havia forma de transpor o barranco, pelo menos à primeira vista, e se observasse com atenção conseguiria ver que o próprio castelo, prisioneiro da floresta, estava todo ele coberto por trepadeiras selvagens e silvas que eram perfeitas guilhotinas. E ainda recaía sobre aquela construção de outro mundo, uma luz espectral, cinzenta e esverdeada, iluminando ou ocultando a sua silhueta, lançando mais sombras do que clarividência.
A frágil luz que seguira até ali tinha desvanecido diante dos seus olhos, para desvendar com uma perplexidade apavorada aquele cenário abismal. Não acreditava naquilo que os seus olhos viam, apesar de não enxergar ainda em pleno e se debater contra uma mente lenta e tumultuosa, nem no crescente lamento arrastado que subitamente veio de dentro das paredes rudes e maciças do castelo, um choro mórbido e deprimente que galgou o abismo putrefacto de águas imóveis e abalou as fundações da fortificação e a secularidade da floresta que se recolhia o mais que podia...

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Definhar imortal (3)

A noite era de Primavera, mas mais quente, numa antecipação urgente do Verão.
Vinham os dois de um jantar soberbo seguindo-se um espetáculo musical cheio de cor e movimento, que a teria deliciado como mel não fosse a história que aprisionava no peito, atribulada e carregada de pesar. Momentos antes, tinha-o visto formular um pedido de casamento, romântico, doce, com todos os floridos que uma mulher podia desejar. Ela não chegara a dar uma resposta...
Ele conduzia agora em silêncio, uma quietude demasiado pesada para se conseguir ignorar. Enquanto as paisagens fugiam para trás, ela ainda escutava a música inebriada e observava, sem poder contemplar, as personagens pairando sobre o palco, acalmando-a com os feixes de luz de vários tons azuis, uma recordação extraviada na sua consciência insondável.
Respirou fundo, sem antever os minutos que se seguiriam, e falou. Tentou suavizar as palavras, mas não havia como. Elas soariam sempre duras, egoístas, lesivas. Contou-lhe como o tinha traído, revelando-se cruamente, apontando a sua incorreção e a culpa que a consumia. Tinha sido um impulso, um delito, e desejava que não fosse irreversível, por tudo o que tinham conquistado juntos. Se pudesse...
A ausência de som apoderou-se deles novamente, inexorável como um julgamento. Não notou uma desaceleração mínima sequer na condução, nem uma ligeira alteração nos traços que compunham o plácido rosto dele.
Ele escutara-a até ao fim, mas as últimas palavras de indulgência soavam-lhe já remotas, de tal forma o sentimento dúbio crescia dentro dele, esforçando-se por o conter. Diante de si viu a estrada dobrar-se sobre si própria até se desfazer perante os braços penetrantes do arvoredo. Tinha abdicado de tanto, por nada. Lutara contra todos e, mais importante, contra si mesmo, evitando os caminhos tortuosos e estrangulando a sua alma desfolhada e imperfeita, mais do que uma vez. Para nada!
Abrandou e encostou o carro, esforçando-se por erguer a voz no ar.
- Sai.
Havia uma inflexão na voz dele que a fez desviar o rosto, com desdém; mas não dele.
Abriu a porta, aguardando expectante durante um segundo, mas nada mais veio para a confortar, pelo que saiu, deixando-se engolir pela espessura da noite amadurecida.
Estava a pouco menos de um quilómetro de casa, mas era tarde e a noite tinha escurecido ainda mais quando, de forma algo imprevisível, um conjunto de nuvens densas e sobrepostas ocultaram a lua cheia. Os saltos dos seus sapatos no alcatrão amplificavam o silêncio da madrugada, incomodando-a ao ponto de escolher seguir na vala da estrada, apesar de não facilitar a caminhada.
Não olhou para trás, e isso não foi um ato irrefletido, de maneira que quando o toque do seu telemóvel estremeceu o ar e ela demorou a atender - a sua voz diferente, cautelosa, no entanto meiga - não o viu chegar nem previu o gume que perfurara as suas costas, uma, duas e três vezes...
Experimentou a dor dilacerante, a pele rasgar-se como um tecido grosseiro. E depois uma dor seca, quando caiu com um som abafado sobre o silvado. Sentiu algo húmido escorrer, cobrindo-lhe o dorso até se afundar nas fendas da terra, e viu que respirava com dificuldade, absorvendo o cheiro e a textura do pó. Depois a dormência, um piedoso embuste e um alívio amargo, deixando de sentir, primeiro o corpo, depois o chão. Mas ainda ouviu a música ao longe e viu também as cores, e através delas sentiu paz, uma última vez.
Estava um calor estranho naquela noite. A luz da lua desfalecia no céu escuro. Já não viu as mãos que tantas vezes envolvera nas suas afastar-lhe os cabelos desmaiados e roçar-lhe timidamente a face. Não viu, nem sentiu. Assim como não escutou o som dos passos que reconhecia afastar-se com relutância do seu corpo, nem a ignição do motor do automóvel, a dezenas de metros dali, ecoar para dentro do bosque.
Não soube quanto tempo depois se levantou, nem teve consciência do ato em si. Parecia estar um pouco tonta e, além disso, apercebera-se de um retardamento nas suas memórias. Caminhou alheada do mundo em redor, como que impulsionada para um lugar que não sabia qual, tudo lhe parecendo sombriamente distante, a luminosidade lúgrube e fria.
Demorou algum tempo até a melodia soar ténue nos seus ouvidos e ela conseguir captar fragmentos soltos na noite. Tinha a ideia de ter estacionado ali perto. Lembrava-se do muro e das trepadeiras. Mas ainda não sentia nada...

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Um texto sobre a saudade

Não há como não sentir o travo rural de uns dias na aldeia, acordando com o embate das fortes e pesadas chuvas nas telhas de barro. O frio arregaça-nos a pele e entranha-se nos ossos, dentro de quatro paredes de pedra, revestidas, do lado de fora, e nesta altura do ano, por uma delicada camada de musgo. Em lado nenhum, como lá em cima, o conforto de uma manta perdida sabe tão bem.
À noite, os serões acontecem à lareira. As histórias são de fantasmas e outros temas do sobrenatural, entre risos e gargalhadas, dos mais jovens aos mais velhos. Mas não há rostos pálidos de medo, só o rubor das bochechas aquecidas.
Os pratos sujos do jantar permanecem longas horas na mesa, desalinhados após o repasto, os legumes da horta escrupulosamente dispostos a um canto, rejeitados pelos mais novos. Uns comem à mesa, outros no sofá.
Um desses dias amanheceu serrano, em paragens familiares, lá para a Serra da Estrela, onde a paisagem ainda é alva, apesar de Maio estar quase aí.
Vai um sorriso complacente para aquele que nos apontou da janela do restaurante o quarto onde havíamos pernoitado sete anos antes; antes de mandarmos vir os filhos. Um vislumbre de nostalgia ronda-nos por momentos, não por perda, mas por um passado revisitado, num presente tão mais desejado.
E também um especial agradecimento para o caricato Sr.º Jacinto que, depois do pequeno-almoço, abriu a minha mala para que eu pudesse guardar lá dentro uns simpáticos potes de mel. "Com os cumprimentos da casa!"
Mas nem tudo foi rústico, para contrastar! Porque nós somos quem somos, e a pasmaceira da aldeia só nos alicia quando combinada com uma discreta dose de insurreição. Pelo que houve lugar para um welcome drink no ice lounge, um brinde aos dias que se seguiriam. E sushi, num ambiente trendy, a mesa e os bancos corridos em tons cor de rosa. Com tempo para relaxar e reencontrar um casal migratório de amigos entre colunas e colinas estudantis - a eclética cidade de Coimbra! -, porque a amizade dita instruções rigorosas sobre não deixarmos de estimar sob pena desta não perdurar.
Por fim, vieram as manhãs solarengas nos parques e as tardes preguiçosas em casa, numa antecipação aos serões de cinema, com pipocas e maltesers à mistura. Duas vezes fomos ao salão de jogos. E duas vezes a adolescência voou, provocante, diante dos nossos olhos. "Vai uma corrida de carros para matar saudades?"
E assim, à nossa distinta maneira, fomos uma vez mais testemunhas de como há dias perfeitos, seja onde for, desde que acompanhados pelas pessoas certas. É um desfecho cliché, mas eles existem por um motivo!

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Férias

Este blog vai estar de férias a partir de hoje até dia 30 de Abril. Voltarei nessa altura com muitas mais histórias para contar. Porque a inspiração nas férias é mais do que muita!
Até lá!

Definhar imortal (2)

Ali estava ele, sentado em cima da pedra fria. Mais do que sentado, sentia-se largado e despojado de tudo, até da alma.
Já não chorava, mas a dor não diminuíra, simplesmente se consolidara, preservada como aquela pedra.
Estava prestes a escurecer. O céu tingia-se de laranja, em breve estaria rosado, depois arroxeado, azul e no final negro como as asas de um corvo, permitindo à lua e às estrelas brilharem fulgorosamente, como um sinal, uma marca de qualquer coisa. No seu caso, interpretava-o como uma memória do esplendor dos anos atrás. Tantos anos que já devia ter perdido a conta. Mas ele sabia quantos, contava-os pesadamente.
Naquele dia particular do ano, ele dirigia-se sempre ali, sem exceção. Aquela teria sido a data em que se vira casado com ela, e aquele seria mais um dos anos em que estariam a celebrar, se ela ainda estivesse com ele. Não estava, nem nunca mais iria estar, e a inevitabilidade desse facto abatia-se ainda sobre ele como uma rabanada de vento, uma onda possante ou um muro a cair. Esmagando tudo.
Aquele cenário magoava-o, iluminando sombriamente o que já estava morto. Mas não havia luz para ele, desde que ela morrera, ou mesmo antes, muito antes. Não havia vida, só um teatro de marionetas, um jogo que o impulsionava diariamente a fazer tudo aquilo que fazia. Ali, ele permitia-se morrer com ela, abandonando o seu corpo velho e cansado, gasto pela mágoa, e viajando através do tempo, ou para trás ou para uma realidade à parte, um futuro diferente, alternativo.
Recordava-a emoldurada naquelas janelas antigas e podres. Era magnífica, tão bela, à luz do candeeiro a óleo, atravessando o quarto com aquela camisa de dormir transparente que o espicaçava. Distinguia-lhe o sorriso provocante, exibindo o corpo generoso, tão doce, tão quente...
Escutava o seu riso ecoando pelos recantos do jardim e assistia novamente às perseguições meio que infantis, testemunhadas pelas seis estátuas de rostos sentenciosos e arrogantes, e àquela tarde em que quebraram a quietude das águas do lago, atirando-se como dois adolescentes apaixonados e ignorando todas e mais algumas regras da decência e do pudor.
Imaginava-os novamente juntos debaixo do alpendre, sentados sobre a mármore numa tarde de Verão, rodeados por risos mais infantis, risos de crianças a brincar; e muitos anos depois, mais próximo da idade dele naquele presente insípido e inanimado, as mãos deles enrugadas, depositadas uma sobre a outra, confirmando a firmeza e a durabilidade de uma união. Inalterável. Tão certo como o facto dela não fazer mais parte deste mundo.
Depois ele ouviu o ferro do portão centenário chiar na noite que entretanto caíra. Não viu nada, nem ouviu mais nada. O portão estava aberto numa noite sem som, sem movimento e sem cor, como uma evidência estranha e esquiva. Mas sentiu o perfume, aquela melíflua fragrância que reconheceria entre todas as que existissem no mundo inteiro. E não soube o fazer, nem o que pensar...

Mais um desafio que viu um fim!

*Os créditos da imagem aqui.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Retrato de uma amizade

As afinidades e os interesses nem por isso eram consonantes naquele grupo de quatro amigas.
Em relação à personagem que me vou focar, talvez a paixão pela leitura e a mística de uma das três, as convicções e a projeção de sonhos de outra e um pouco o gosto pela música da que sobrava, para além de achar esta excecionalmente engraçada e expontânea.
Mas definitivamente não se pelava por moda e desconhecia todas as tendências, atuais e passadas, e nem sequer fazia a mínima ideia das da próxima estação naquele ano. Dizem que há cores que predominam numas e noutras, ela não sabia nada disso. Curiosamente, eu também não, pelo que não me arrisco a alongar muito o assunto... Era um tanto ou quanto deslavada, sem um estilo próprio, odiava comprar roupa e frustrava-se ao final de dois minutos a especular sobre o que é que combinava com o quê.
Também não promovia o culto da corpo, não ia ao ginásio todos os dias, não se delongava na pele casca de laranja, até ficar deprimida, e achava mirabolante as várias correntes que se vendiam sobre as dietas. Sim, apreciava a ideia de um corpo esbelto, mas desejava acima de tudo sentir-se bem e saudável. Apesar de na maioria das vezes não se sentir nem uma coisa, nem outra.
E coisa que a deixava com um nó nos neurónios e arranhava-lhe a paciência eram as conversas demasiado femininas, ocas e trespassadas de clichés.
Todas estas coisas encontravam refúgio ali, um pouco mais que outras, umas personagens envergando mais, outras menos, em relação a cada uma das áreas.
Assim, quando marcavam encontros nas casas umas das outras, não esquecia de levar o seu portátil e, enquanto as três lançavam-se ao artesanato caseiro para depois vender nas feiras, criando peças de bijutaria absolutamente fenomenais (se conseguisse avaliar com olhos de quem entendia realmente da coisa), navegava pela internet e até escrevia qualquer coisa. Habitualmente, não levava nenhum livro porque já tinha em casa das três uma qualquer leitura, todos com marcador a localizar a página onde ficara no último encontro.
Ainda assim, ela estava lá e, inclusivamente, participava nos preparativos da tarde, com a confeção de um bolo, bolachas ou biscoitos para adoçarem os trabalhos. Aprendeu um pouco sobre pastelaria e até gostou. A isso ela deu hipótese. Talvez um dia se dignasse, também, a pegar numa revista de missangas, ou coisa que o valha, e a deixar de lado a sua arrogância e as ideias preconcebidas sobre a matéria.
A verdade é que sentia-se bem naquele ambiente, sentada na mesa ou numa poltrona desviada para poder ver, e nunca se sentiu excluída, dando ou não atenção ao que acontecia no sofá, próximo de si.
- Sinónimo de curioso? - atirava ela, por vezes, para o ar, compenetrada nas suas coisas.
- ... estranho - respondia a que se interessava pelas letras.
- O que estás a escrever? - perguntava outra sem desviar os olhos do alfinete.
A que não se ouvia estava distraída, como na maioria das vezes.
O que interessava, no fim de contas, era que as quatro partilhavam do mesmo prato de bolo, e às vezes do mesmo garfo, permaneciam unidas há já duas décadas e muitas mais adiante, se a vida o permitir...

terça-feira, 17 de abril de 2012

Prisão (2)

Havia um rapaz, que desconhecia a história que assombrava a aldeia. Era um forasteiro, um viajante do sul, que errara por desertos extensos, montanhas áridas e lagos secos.
Percorreu as calçadas solitárias da aldeia, através das ruínas silenciosas. Espionou as casas, com curiosidade, cujas portas e janelas tinham sido vedadas com tábuas, do lado de fora. Escutou uma madeira solta chiar ao vento, algures. E chutou, distraídamente, uma garrafa vazia diante da taberna, que rolou e ecoou exageradamente no largo da igreja.
Achou aquele cenário absolutamente invulgar e, apesar dos seus olhos nómadas experientes, não conseguiu evitar um calafrio. Mas foi junto às barricadas e aos destroços da última ponte que estacou, com apreensão. O que poderia ter causado tamanho pavor às gentes daquela aldeia para se isolarem daquela maneira? Teriam abandonado as suas casas e as suas vidas à custa do quê? Será que tinham realmente fugido ou algo, fora do anormal, acontecera? Tantas perguntas sem resposta...
Lançou o olhar além do braço do rio, a corrente fina de água deslizava sobre os seixos limosos suavizando a paisagem. Observou a planície descoberta e o sopé das montanhas, onde começavam os bosques, uma massa tão escura como nunca viu. O que escondiam aqueles cerrados, para lá das colinas e de uma floresta tão tenebrosa?
Próximo de si, uma das barricadas tinha cedido, provavelmente, com o avançar do tempo. Pelo estado dos materiais supunha que teriam passado muitos anos desde que a aldeia ficara à mercê de si própria.
Aproximou-se a avaliou o caminho até ao rio. Na verdade, não havia caminho. Seria difícil e perigoso, mas a prática dizia-lhe que não era uma missão impossível, por isso, desceu, agarrado às pedras, à terra e até aos tufos resistentes de vegetação e apoiando-se nos socalcos do despenhadeiro.
Finalmente, os seus pés pisaram o leito do rio. O lençol de água era muito fraco e, em alguns pontos, a profundidade máxima chegar-lhe-ia, talvez, aos joelhos. Não podia era descuidar-se com as pedras soltas e escorregadias.
Antes de avançar, tirou a mochila que trazia às costas e guardou nela as botas e as meias que descalçou. Depois de arregaçar as calças, apeou caminho, aliviando e refrescando os pés cansados na água translúcida.
Do outro lado, o terreno era menos acidentado e mais arrelvado. Flores arroxeadas despontavam, dispersas no campo, e desta vez sentiu, com igual prazer, os pés pisarem a erva aquecida pelos últimos raios de sol do dia.
Teria que acampar para a noite e escolheu a orla da floresta, a nordeste, para o efeito.
Confortou o estômago com apenas água e bolachas. Esperava reabastecer-se na aldeia que, então, descobriu estar abandonada. Pelo menos encontrara água fresca, onde enchera o seu cantil. Mas amanhã teria que pescar e caçar, antes de entrar na floresta. Ou melhor, antes de descobrir uma entrada, dado a vegetação ser tão peculiarmente frondosa.
A noite estava quente, o vento tinha amainado umas horas antes, mas cobria-se com uma manta que tinha tecido com a pele de uma cabra que caçara no Outono passado e descansava, agora, debaixo de um salgueiro, atravessando com o olhar as folhagens até ao céu estrelado. Era a noite mais escura desde há um mês atrás, por isso viam-se tantas estrelas, milhares de pontos luminosos a brilhar debilmente num manto negro.
Estava quase a adormecer, perdendo-se nas malhas de sonhos supersticiosos, quando uma brisa gelada desceu sobre o seu rosto e um galho partiu-se muito próximo de si.
Levantou-se de um salto, ainda a tempo de seguir o som fugidio de arbustos a remexerem. Pareceu-lhe, para seu assombro, o som de uma gargalhada indecorosa a desaparecer nas profundezas da floresta...

segunda-feira, 16 de abril de 2012

As Brumas do Oriente (2)

Era uma fêmea, ele sentiu-o quando a viu ondular atrás das colunas tombadas sobre a areia e da cauda emanou uma áurea, brilhando misteriosamente nas águas escuras, uma luz azul revelando um vulto esguio e voluptuoso, de longos cabelos flutuantes e reflexos marinhos numa pele sobrenatural.
De alguma forma admirou-se. Não esperava este encontro e o encanto ameaçou os escudos que tinha erguido em torno do seu corpo mortal.
Nunca seria um duelo mítico. Não estava à altura das histórias de glória e de imortalidade desta extraordinária criatura e do submundo onde pertencia. Não tinha dúvidas que o esmagaria entre as suas presas colossais, fosse homem ou mulher. Se já se sentia uma anedota, agora sentia-se humilhado. Haveria alguma forma de reclamar as pedras sem ter que lutar? Os fragmentos de esperança jaziam naufragados entre as ruínas silenciosas daquele mar.
Desviou, involuntariamente, o olhar para cima, milhas abaixo da superfície, onde certamente pairava um luar sombrio, navegando sobre o plácido manto sem sequer esboçar perturbar o seu espelho. Ainda lhe sobrava algum tempo para continuar a respirar, com segurança, debaixo de água.
Não possuía a profundidade e a reverência de um mito, mas trazia consigo uma pequena fracção de poder e magia daquele mundo. Não estava ali aleatoriamente, e só isso concedia-lhe valor e uma hipótese, ainda que a sombra dela.
Largou as dúvidas na corrente e enfrentou a sua profecia. Lançou o olhar no cenário em diante, para um cemitério que não permitia nenhuma forma de culto, de esplendorosas edificações, arqueadas pelo desgaste do tempo, que tinham-se tornado a morada de peixes e de outros animais marinhos.
Percorreu os blocos de pedra, a vegetação contígua e os bancos de areia, esforçando-se por tornar a sua visão mais nítida, imerso naquele imenso lençol baço. Até que os seus olhos encontraram duas pérolas brilhantes, redondas e temerárias, que sobressaíram do negrume de um pórtico onde os destroços se aglomeravam numa massa maior, e avançaram, um passo, o brilho frio crivado no seu corpo como facas afiadas.
Assistiu, com temor e repulsa, ao olhar que lhe congelou a alma, alçando um corpo monstruoso, alucinadamente curvo e carregado de escamas aguçadas. Duas extensas fileiras de dentes retorcidos, um focinho rugoso e encrispado e uma crina prateada, assemelhando-se à lâmina de várias espadas sobrepostas, compunham a cabeça daquela terrível criatura, guardiã dos mares, que observava, incrédula e ameaçadoramente, aquele que tivera a audácia de invadir o seu território interdito!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Prisão

Há muito tempo atrás, numa aldeia refugiada num vale, vivia uma triste rapariguinha de cabelos escorridos.
Levantava-se muito cedo para trabalhar nos campos com os pais, mas antes ainda ajudava a mãe com o pão na casa do forno. Quando voltava não tinha folga, como as outras crianças, para brincar e fazer ecoar risos e gargalhadas pelas lajes dos caminhos, até o sino da igreja consolidar a hora do jantar.
Era a única filha do casal. À noite, ajudava um pouco mais nas lidas da casa, enquanto o pai corrompia-se na taberna lá do sítio. Atravessara aquela idade em que pensava, primeiro, em si própria. Agora só lamentava pela sua mãe, largada sozinha longas horas noite dentro.
Com o pai, não tinha estabelecido grande afinidade. Ninguém era violento com ninguém, mas também não havia espaço para consolo. Para ela, não passavam de dois estranhos forçados a conviver na mesma casa.
Assim, antes de se deitar, abeirava-se à janela do seu quarto, com os olhos negros lançados ao longe, nas montanhas, depois dos bosques e da floresta, e sonhava com as terras além.
Mas logo veio a doença, que lhe roubou a mãe e, de uma certa forma, levou-lhe também o pai, que passou a prolongar, ainda mais, as madrugadas na companhia do vinho. E uma noite ele não voltou...
Ficou completamente sozinha. Ela e os crucifixos silenciosos da mãe à beira do leito.
Então, um dia, atravessando com o olhar os picos frondosos das montanhas, decidiu partir. Aventurou-se, sozinha, de sacola às costas, depois de transpor a última ponte sobre o último braço do rio, que separava a aldeia da incivilização, através da floresta e dos segredos lá mantidos, para nunca mais regressar. Todos conheciam os perigos que os bosques encerravam. As armadilhas dos caçadores, os animais selvagens, as cascatas resvaladiças, as plantas venenosas, a fome...
Não se soube mais dela e, depois disso, o mais certo era que o seu nome deixasse de ser comentado nas conversas entre os aldeãos, e até que o seu rosto fosse esquecido, mas isso não aconteceu. O nome dela ainda surge nas histórias de Inverno à lareira, bem como os fatídicos destinos que se lhe afiguraram, mas nos serões de outras casas, longe da aldeia.
Isto porque, na noite seguinte à sua partida, os sons vieram. Das sinuosas encostas, uma lúgubre lamúria desceu como uma neblina, densa e vagarosa, e abateu-se pairando sobre os telhados. Aterrorizou as gentes da aldeia e afugentou os mais corajosos para dentro das suas casas, que se fecharam e trancaram a sete chaves. Até os que não eram crentes passaram a rezar, a partir daquela noite...
Rapidamente vieram os avisos para ninguém se aventurar nas profundezas dos bosques e para as crianças não atravessarem a orla da floresta. Destruiu-se a última ponte e ergueram-se barricadas.
Assim viveu a aldeia até ao último dos seus dias, até ser abandonada e os últimos velhos morrerem, sem nunca ninguém ter prosseguido para norte, ou sequer ter-se avistado vir de lá alguém.
A vegetação tornou-se mais cerrada, as ramagens tão escuras e apertadas que os raios de sol deixaram de conseguir penetrar e acabaram por extinguir aquele choro sombrio e inconsolável, abafando-o e aprisionando-o nas masmorras da floresta.
Ninguém mais ouviu, mas isso não significava que (ela) não estivesse lá.

Este texto decorre do desafio lançado aqui.



quinta-feira, 12 de abril de 2012

As Brumas do Oriente

Dizia-se que quem possuísse as mágicas Gemas do Dragão comandaria as tropas através do pó e além da vastidão do mar. Ouvira-o em histórias e canções de guerra, numa noite sem luar, em torno de uma fogueira e à beira da estação que carregaria os ventos gelados e as tempestades do norte.
Em breve, as asperezas do Inverno ameaçariam as casas e o gelo avançaria sobre as águas espelhadas, diminuindo drasticamente as chances das buscas, se não as tornasse numa missão impossível.
O guardião das gemas era o próprio dragão, Deus dos oceanos, dos mares, dos rios e dos lagos.
Habitando as moradas submersas que quisesse, navegava sob os mantos azuis, atravessando grutas profundas, cruzando os céus quando precisava e voltando a mergulhar quando entendia. Flutuava entre os destroços de palácios revestidos de algas e engolidos pela fúria das águas, coroado por elevados tetos abobadados e rodeado de esquecidos tesouros refletidos nas suas escamas.
Não passavam de mitos, mas aqueles eram tempos conturbados, acumulados de dor e infelicidade. E os tempos de escuridão eram lembrados por trazerem consigo réstias de esperança e utopias.
Pensava nisso, resguardado do frio por grossas mantas que se abatiam sobre o seu corpo, desejando a queda do império, os seus inimigos derrotados e, quem sabe, o esplendor da coroa e do bastão do Grande Rei, do Imperador, a glória do próprio Deus do Sol para si!
Ignorava as sombras dos ramos que atravessavam a janela do seu quarto e se debatiam nas paredes nuas, desenhando cenários ameaçadores, os uivos do vento cortante, que gelavam a própria alma e escapam das frinchas para oscilar a vela em cima do móvel, e também a luz sombria e misteriosa que descia dos astros na noite escura.
Desdenhava os sinais do perigo que lhe eram revelados com complacência e a humildade que os seus pais tinham-se esforçado por lhe transmitir. Já não se importava com nada disso. Era tarde demais! A benevolência não os salvara da tortura e do ferro das espadas que tinham jurado fidelidade ao povo.
Certificar-se-ia de que os culpados cairiam perante o peso do seu punho e conhecessem a mágoa e a vingança que o tinham moldado. Levaria à sua frente quem e o que quer que fosse que se lhe atravessasse no caminho. Era o que tinha prometido...

terça-feira, 10 de abril de 2012

Os cinco e o caso da praia (despretensiosamente)

Zé era uma rapariga de cabelos rebeldes e encaracolados que vivia em Kirrin com os seus pais e o seu cão Tim. Não era uma rapariga como outra qualquer, facilmente confundida com um rapaz e orgulhando-se dessa sua característica particular.
Quem conhecia (mal) a Zé diria que era mal educada, desagradável e bicho-do-mato. Difícil de agradar e ser agradada, passava a maior parte do tempo a brincar com o Tim ansiando pelas férias passadas com os seus primos, Júlio, David e Ana.
Os cinco (contando com o Tim, claro!), ávidos por aventura, encontravam sempre forma de se meterem em sarilhos (e sair deles airosamente, também!), e juntos contaram às crianças do antigamente histórias em todos os tipos de cenários imaginários: na vastidão do mar, em ilhas isoladas, nas altas montanhas ou em grutas profundas, em mansões assombradas e outras ruínas abandonadas, nas densas florestas, em lagos negros e até nos circos forasteiros...
Criado por uma célebre escritora, este grupo unido imortalizou o conceito de aventura no seio infanto-juvenil e inspirou a geração que veio a seguir. Eu, inclusive.

O vento chicoteava as janelas circulares do farol e empurrava a chuva picada. Tinha escolhido uma bela noite para discutir com o pai, à mesa de jantar, e fugir do casal Kirrin, com o fiel Tim seguindo-a como uma sombra, como sempre.
Correu instintivamente, sem parar, e foi ter onde sempre ia quando se aborrecia. Percorria as crinas das dunas, explorava as grutas ao longo dos penhascos, lançava no ar paus para o Tim brincar e preguiçava na areia quente durante horas até se atrasar para o jantar. Não havia palmo que não conhecesse naquela enseada ou pedaço de mar onde não tivesse mergulhado.
Procurando abrigo da tempestade, refugiou-se no farol entrando por uma grelha rachada. Descobrira-a uns dias antes e, entusiasmada, resolvera manter um segredo só seu, camuflando a entrada com pedras que arrastara da praia até ali.
Encharcada, a tremer de frio, subiu até à bateria e esperou que a chuva aliviasse, embora suspeitasse que iria trovejar. Por aquele andar regressaria a casa só no dia seguinte, deixando os pais loucos de preocupação. Sem dúvida nenhuma que lhe esperava o maior castigo de todos os tempos...
Encostou-se num canto à parede gelada e húmida para se sentar com o Tim, mas algo lá fora despertou-lhe a atenção.
Protegendo-se da luz que piscava regularmente sobre as escarpas acidentadas, Zé viu, para lá das ondas assanhadas, uma pequena embarcação ser sacudida pelo mar. Distinguiu dois vultos escuros que manobravam o barco com dificuldade, em direção à praia. Dali o panorama não parecia estar fácil, com o mar encrispado abrindo-se para os engolir.
Não estavam muito longe do areal, mas naquele cenário medonho isso pouco importava. Tão depressa podiam atirar-se para a expectativa de um lençol recolhido, como serem subitamente puxados para o abismo e naufragarem entre os túmulos submersos.
Um relâmpago rasgou o céu, iluminando tudo à sua volta, e ela ficou com a ideia de ter visto um deles atirar qualquer coisa borda fora. Inclinou-se mais para a frente para ver melhor, colada à janela, na altura em que ribombou no ar o trovão denunciado segundos antes, sobressaltando-a. Estava novamente escuro, e deixou de ver.
Arriscou descer novamente as escadas em caracol até lá abaixo. Tim seguiu-a fielmente. O vento uivava atrás das suas costas, perseguindo-a até à grelha. Desta vez não teve tempo de colocar as pedras no devido lugar.
Saiu para o meio da tempestade, acautelando-se para não dar um passo em falso na falésia escorregadia. Segurava o Tim pela coleira, encolhido perante o temporal. Outro relâmpago. Olhando em frente, não viu a embarcação e ficou apreensiva. Apressou-se para o esconderijo que tinha em mente, de onde poderia observar com mais segurança, mas percebeu que não tinha tempo, pois ouviu vozes grosseiras trazidas pelo vento agreste e o Tim rosnou baixinho.
- Fixaste o sítio?
- Sim. - respondera outra voz diferente.
- Amanhã à noite... - o trovão ressoou novamente no céu, com um intervalo mais curto e um som infernal, assustadoramente próximo. O Tim ganiu e recuou um pouco.
- Rápido!... esconder o barco... o Quim... voltamos à mesma hora... resgatar o pacote... puxa desse lado...
Não via nada, estava desprotegida numa área aberta e desorientou-se momentaneamente, o suficiente para sentir medo, apesar de estar com o Tim. Mas para seu alívio as vozes tornaram-se mais soltas, até serem fragmentos impercetíveis.
Mediu rapidamente a situação e pensou que talvez fossem bandidos. Não queria nada dar de caras com aqueles dois na praia! O que quer que fosse que eles andavam ali a aprontar, e àquelas horas, era certo ser ilegal e demasiado perigoso para lidar com isso sozinha.
Deu um ligeiro esticão na coleira do Tim, que ficara mais relaxado à medida que as vozes se perdiam na tempestade, e voltaram para trás, saltando sobre as rochas e sobre as poças da chuva e, mais tarde, deslizando pelas estradas a caminho de casa.
Amanhã chegariam os primos e ela tinha uma história fantástica para lhes contar! Não iam acreditar! Uma nova aventura para se dedicarem em pleno nestas mini-férias. Ia tão entusiasmada a fazer planos que esquecera-se que, amanhã, o mais certo era estar de castigo...

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Definhar imortal

Tinha deixado o carro junto ao muro alto, assaltado de trepadeiras desordenadas. A estrada era muito estreita, quase roçou com o espelho retrovisor nas saliências rochosas ao estacionar.
Para além de não haver luz na rua, a ausência da lua, dissimulada pelas nuvens compactas ou pelo denso arvoredo da serra, não deixava antever muito além.
Ajeitou as pregas do casaco e dirigiu-se à sombra imponente do portão aberto para trás. Os ferros curvavam-se elaboradamente muito lá em cima, mas, apesar disso, não tinha largura suficiente para deixar passar um carro pequeno, o que era diferente e inesperado, pensou pela segunda vez naquela noite. De alguma forma inusitada achou que já deveria saber...
Atravessava agora a entrada fazendo ecoar desarmoniosamente os saltos dos seus sapatos novos na calçada desnivelada. Distinguiu um padrão de vultos, estátuas intercaladas com exuberantes e exóticos vasos abrigando plantas irreconhecíveis, que ladeavam o caminho até à casa principal. Sobre um lanço demorado de escadas, impregnada daquele brilho misterioso, a mansão assemelhava-se a uma severa ruína, apagada...
Não distinguiu nenhum outro som na noite. Os ramos das árvores e os arbustos permaneciam tão estáticos e silenciosos como as petrificadas figuras míticas, gastas, contorcendo-se nos seus pedestais. Talvez mais, até!
Sentiu-se desabrigada e invadida pelo peso esmagador do tempo ali capturado.
Apercebeu-se de mais inexistências naquela noite. Nenhuma luz escapava do interior da casa quando todas as janelas tinham as portadas escancaradas deixando a descoberto os vidros estilhaçados. Não havia brisa, a madeira não estalava, e agora o som dos seus passos fôra subitamente abafado por um troço imprevisível de terra, antes de chegar às colunas que desciam abrutamente do telhado. Quase caiu, quando enterrou os saltos nas fendas da vereda e um dos sapatos saltara-lhe do pé. Quando olhou em volta, à procura, não o encontrou. Ainda se agachou, em vão, apalpando o chão empoeirado, até que decidiu apoiar-se numa das colunas e descalçar o outro sapato. Segurando-o com uma mão subiu a escadaria, contactando com a pedra gelada, incorporando a pulsação inanimada da mármore e escutando as vozes intemporais que nada diziam.
Subitamente apercebeu-se de outra coisa. Se havia muito que não encontrava lugar ali, na imensidão de coisa nenhuma, o mesmo não se podia dizer do cheiro. As múltiplas fragrâncias que lhe chegavam eram intricadas e absorventes, transportando-a para as fronteiras entre o céu e a terra, o dia e a noite, a vida e a morte, se é que sabia alguma coisa sobre isso. Tão facilmente confirmou o cheiro deteriorado e enferrujado da fechadura que encerrava a porta imóvel à sua frente, em tempos pujante e luzidia, como se confundiu com o perfume do lago prateado revestido de nenúfares, a poucos metros dali, nos seus dias jovens, agora reprimindo águas profundamente negras e imperturbáveis.
Perguntou-se se alguém viria recebê-la com a vulgaridade familiar ou se o som oco do batente soaria através dos corredores sombrios até se perder nalguma teia a pender dos lustres baços, fechando-se nos escombros dos armários retorcidos, asfixiando-se num farrapo renunciado de algum vestido.
No fundo sabia, pois sentia a dor da ausência, da fatalidade. O que não sabia era como tinha deixado aquele lugar, em primeiro lugar, mas tinha regressado, disso agora lembrava-se. E lembrou-se de mais, na altura em que uma nuvem obstinada desvendou um luar vermelho de uma noite muito mais antiga, envergando sangue, matizando um corpo violentado deixado ao abandono e perspassando-o enigmaticamente quando, por fim, ela se ergueu, elegante e esbelta como nunca, a poucos quilómetros dali.
Todas as noites regressava a casa pelo mesmo caminho, à mesma hora, como era suposto ter acontecido anos antes. Não via ninguém e nunca ninguém a via. E de todas as vezes que estacava diante da única porta que ansiava abrir, o seu coração emudecido debatia-se perante a desolada evidência do que fôra interrompido, do seu futuro impiedosamente roubado.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

O certo e o errado

No parque de estacionamento ela esperava impaciente, com um nervoso miudinho a aflorar-lhe na pele. Uma lua minguante sorria ironicamente no céu. O que estava ela a fazer?
Os largos anos passados em silêncio, cruzando olhares acanhados e percorrendo os mesmos corredores e cantinas, tinham sido ásperos com eles. Era muito jovem para se conseguir revelar com esplendor e confiança. Nos anos seguintes buscara o conforto e a segurança noutros rostos, mas era o "dele" que ela sempre acabava por encontrar nas almofadas das camas onde se deitava.
Aquela noite tinha um sabor especial, um sabor a certo e a errado, a memórias e ao presente. O futuro não tinha lugar ali. O que ali havia era momentâneo, era volátil, mas era o que ambos precisavam para se libertar dos problemas que tinham deixado em casa. Como tinham conseguido transformar a inocência do que em tempos tinham sentido em algo tão nu e cru? Não interessava... 
Retirou o telemóvel da mala e mandou um sms, provocando-o, impregnando-o de desejo. Ela estava ali, à espera dele, embaciando os vidros com a sua respiração adocicada. "Estou a chegar :)", recebeu de volta. A simplicidade daquelas palavras quebrava-a, numa altura que ela própria já tinha vencido as barreiras da timidez.
O coração parecia saltar-lhe no peito, acelerado, excitado. Passou pouco tempo até ouvir o trinco da porta do lado do passageiro. Ele entrou, inundando o assento com um aroma masculino. Ao fim daqueles anos olhavam-se agora sem receios ou pudores, espicaçando-se e atormentando-se mutuamente. 
Ele aproximou-se demasiado, acariciou-lhe os longos cabelos pretos com determinação e puxou-a para ele, encontrando o corpo dela. No texting que ela lhe tinha mandado, tinha-lhe também dito que estava com frio. Acabava de confirmar as camadas de roupa que tinha para despir. 
Longe dali, num cenário que tinha tudo para ser certo, uma mão delgada amparou uma chucha abafando um ténue choro. Enamorada por dois pequeninos olhos tão brilhantes, protegia aquele frágil ser com mel na voz: "O pai já vem..."

quinta-feira, 5 de abril de 2012

No bosque do tempo

A chuva escorria-lhe pelas costas do cabelo ensopado. O vestido de algodão colava-se-lhe ao corpo, dificultando-lhe os movimentos e até a respirar. Era suposto ter frio, mas não sentia coisa nenhuma. Não sentia nada de nada, a não ser um grande vazio em torno dela. Persistiam apenas os ecos da enxurrada de água abrir poças no terreno plano, perturbar furiosamente o espelho negro da lagoa e despir as árvores da sua frágil vestimenta de Inverno.
Não havia lugar para o sal das lágrimas se misturarem com a água doce que se abatia do negrume do céu, e a manhã já ia avançada. Ele partira fazia algumas horas, as suas pegadas já se tinham apagado com a lama a ser arrastada através dos pés descalços dela, mas ainda não se movera.
Talvez, permanecendo assim imóvel, conseguisse enganar o tempo e manter tudo como dantes. Talvez, se esperasse um pouco mais, o visse retornar com uma fagulha que fosse no olhar, cavalgando ao longe, elegante na sua sela e o som oco dos cascos nos charcos. Talvez acordasse, muito em breve.
Assim esperava, sem pressa, mas com a dúvida e o desolamento a rondar avidamente, também eles expetantes e vorazes para a engolir num covil demasiado fundo e ardiloso. Uma prisão de almas solitárias e errantes. Um leito espinhoso e implacável feito à sua medida.
Pouco a pouco afundava-se no lamaçal, prendendo-se à memória de uma palavra insuficiente e de um olhar fugaz, nem tão pouco uma aproximação que lhe permitisse reter um aroma, uma desejável textura. Então era isto? Era este o sabor do fim?
Fechou levemente a mão e sentiu esse movimento, enferrujado, contrariado. Tinha os dedos frios, dormentes e rijos. Apercebeu-se agora que tremia. Começava a sentir e isso era mais doloroso que tudo o que alguma vez sentira.
Não tinha deixado de olhar em frente, mesmo transportando-se para trás no tempo. Desta vez não viu nenhuma sombra fugidia, nenhum vulto, nenhuma ilusão. De facto, mal conseguia ver um palmo em diante de tão carregada que era tromba de água. Não fazia ideia de quando a chuva daria sinais de tréguas ou de quando um tímido raio de sol encontraria caminho para despontar detrás de uma nuvem cinzenta.
Só estava ela ali, desprotegida perante o poder da natureza. Os animais tinham procurado o refúgio das suas tocas, mesmo aqueles que tinham suspendido a fuga, por breves instantes, para a observar, curiosos. Muito perto dela, sobre uma árvore menos despojada, protegido numa toca, um mocho acordado admirava-a com os olhos semi-abertos. Percebeu, ao mesmo tempo que ela, o movimento das mãos, o girar da roda de fiar e a tapeçaria a começar, e piou, contra todas as expetativas diurnas.
Foi quando ela se voltou e começou a caminhar.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Muros

A cozinha tinha uma luz estranha naquela noite. Lá fora, a lua crescia possante num céu sem estrelas.
Por um lado, o ambiente estava agradavelmente quente e eu deixava-me embalar pela algazarra dos miúdos que, depois de um ano letivo demasiado longo, viam-se agora soltos numa arena aberta, com o mundo pela frente e poucas páginas de vida, escritas com a leveza própria da juventude.
Sentada muito direita na mesa, segurava as mãos uma na outra. Ao centro, o arranjo de flores murchava lentamente. Amanhã traria um ramo de gerânios da praça, anotei mentalmente.
Escutava-o por trás de mim a tirar a chaleira do lume e a dispor calmamente os pratos no balcão. Abriu a porta de um armário, depois outra.
- As chávenas estão à direita. - disse-lhe. Não acertava uma.
Ele não respondeu, nem tão pouco o ouvi suspirar perante o desdém que se conseguia adivinhar no meu tom de voz. Desta vez abriu a porta certa e terminou de fazer o chá, em silêncio. Só se ouvia a noite de verão, e com ela as notas de música que perdêramos em alguma altura.
Quantas mais coisas haveriam ainda por dizer? Verdades egoisticamente camufladas para me proteger. Proteger-me dele ou protegê-lo de mim? Ou protegê-la, a ela... Pensamentos agrestes que me corroíam até lugares insondáveis.
Ele sentou-se à minha frente, com as duas chávenas fumegantes nas mãos, admirando-me com os olhos seguros de um felino, parcialmente cobertos pelo vapor que se elevava do chá. Com aquele olhar de quem continuaria a magoar-me propositadamente ao longo dos anos.
Por fim falou, com uma voz profunda que soaria sempre doce aos meus ouvidos. Perguntou-me, como se isso importasse:
- Queres falar?
Queria. Queria falar tanta coisa. Lutava contra um abismo de palavras com espinhos, pronta para o magoar de volta. Mas não havia forma. Entre nós havia um muro impenetrável, solidificado com o peso e a dureza dos nossos anos em conjunto. Na verdade, não havia nada de novo para dizer. Olhei através da janela, com os meus sonhos projetados para um futuro que já não existia para nenhum dos dois.
- Não. - respondi.

O início

Custa sempre começar um blog. O primeiro post é uma grande responsabilidade. Ele é o prelúdio de algo que se desconhece a sorte, o rumo. Carregado de sentido abre portas que, à partida, não vão dar a lugar nenhum, e vão dar aonde quisermos. É uma meta, mas antes disso é um percurso. É um lar, a expetativa de um porto seguro, uma cabana frágil no meio de uma tempestade, uma labareda numa lamparina diante de uma janela aberta. É tudo aquilo que eu quiser, e tudo aquilo que for entendido por quem aqui veio parar. Por agora, é tudo.