segunda-feira, 28 de maio de 2012

Murmúrios da vila

O meu dia começou ali, naquele instante. Não usava relógio, mas o sol dizia-me que eram perto das cinco da tarde. Na verdade, eu não sei interpretar o horário do sol, mas guiei-me pela sombra do palácio, em pleno mês de Agosto, já que o local me era bem familiar.
As silhuetas avançavam ao longo das ruas sinuosas, tricotando caminho como se tivessem todo o tempo do mundo, avançando e retrocedendo, hesitando diante de um mapa e apontando o dedo para vários lugares ao mesmo tempo.
As minúsculas partículas de vidro incrustadas nos caminhos deixaram de refletir a luz, mas ninguém deu por isso, a não ser eu. Ainda era cedo, mas o sol já iniciara o seu lento e secreto percurso de fuga, enquanto dezenas de pessoas inundavam a praça central, igual a todos os dias.
Sorvi lentamente o cigarro, retendo a voluta de fumo até lacrimejar. Então, soltei-a, contemplando a imagem distorcida pela cortina trémula que ameaçava brotar dos meus olhos, moldando-se e trasformando-se numa massa duvidosa e indefinida, até a minha visão voltar ao normal. Esbocei uma careta de repreensão. Devia deixar de fumar, se é que valia a pena...
Entre os meus dedos, a coluna de cinza ameaçava tombar. Juntei-lhe o peso ambíguo da minha consciência e não resistiu muito mais. Por fim, atirei o cigarro ao chão e amachuquei-o nas lajes da ladeira que conduzia às traseiras do palácio.
Apesar de toda a azáfama diária da vila, naquele momento, Sintra ainda se entorpecia entre sonhos ancestrais. De noite é que velava a lua, ou a ausência dela, e todos os mistérios que se imiscuíam nas sombras. Normalmente, eu fazia parte, quando começassem os murmúrios...
Demorei-me um pouco mais na minha ociosidade, projetando, sem querer, a mente para trás.
Em diante, a serra elevava-se num terreno acidentado até à haste da bandeira. Lembrei-me do profundo prazer ao soerguer-me uma tarde sobre a varanda de um rochedo, lavado em suor, escutando-a sacudir ao vento. Detinha o mundo a meus pés, debaixo de uma chuva miudinha que fingia as lágrimas nos meus olhos, e nesse dia o meu espírito magoado e revolto encontrara um rumo mais apaziguado. Daí para a frente, trepar aquela encosta íngreme passou a fazer parte de um processo de cicatrização que infligi a mim mesmo.
Assim que os sinos tocaram confirmando as horas, apeei caminho. Desta vez, não havia lugar nem hora marcada, embora hora nunca tivesse havido.
Em breve, os telhados cobrir-se-iam de ouro e das janelas abertas seriam desvendados a pouco e pouco os fragmentos da história de cada família, menos a minha. A minha estrada é a mais vazia e solitária de todas...

Este é um texto que encontrei durante as arrumações da semana passada e que escrevi há cerca de uns sete ou oito anos. No entanto, não resisti a dar-lhe um tratamento ao transcrevê-lo para aqui. 

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