Há muito tempo atrás, numa aldeia refugiada num vale, vivia uma triste rapariguinha de cabelos escorridos.
Levantava-se muito cedo para trabalhar nos campos com os pais, mas antes ainda ajudava a mãe com o pão na casa do forno. Quando voltava não tinha folga, como as outras crianças, para brincar e fazer ecoar risos e gargalhadas pelas lajes dos caminhos, até o sino da igreja consolidar a hora do jantar.
Era a única filha do casal. À noite, ajudava um pouco mais nas lidas da casa, enquanto o pai corrompia-se na taberna lá do sítio. Atravessara aquela idade em que pensava, primeiro, em si própria. Agora só lamentava pela sua mãe, largada sozinha longas horas noite dentro.
Com o pai, não tinha estabelecido grande afinidade. Ninguém era violento com ninguém, mas também não havia espaço para consolo. Para ela, não passavam de dois estranhos forçados a conviver na mesma casa.
Assim, antes de se deitar, abeirava-se à janela do seu quarto, com os olhos negros lançados ao longe, nas montanhas, depois dos bosques e da floresta, e sonhava com as terras além.
Mas logo veio a doença, que lhe roubou a mãe e, de uma certa forma, levou-lhe também o pai, que passou a prolongar, ainda mais, as madrugadas na companhia do vinho. E uma noite ele não voltou...
Ficou completamente sozinha. Ela e os crucifixos silenciosos da mãe à beira do leito.
Então, um dia, atravessando com o olhar os picos frondosos das montanhas, decidiu partir. Aventurou-se, sozinha, de sacola às costas, depois de transpor a última ponte sobre o último braço do rio, que separava a aldeia da incivilização, através da floresta e dos segredos lá mantidos, para nunca mais regressar. Todos conheciam os perigos que os bosques encerravam. As armadilhas dos caçadores, os animais selvagens, as cascatas resvaladiças, as plantas venenosas, a fome...
Não se soube mais dela e, depois disso, o mais certo era que o seu nome deixasse de ser comentado nas conversas entre os aldeãos, e até que o seu rosto fosse esquecido, mas isso não aconteceu. O nome dela ainda surge nas histórias de Inverno à lareira, bem como os fatídicos destinos que se lhe afiguraram, mas nos serões de outras casas, longe da aldeia.
Isto porque, na noite seguinte à sua partida, os sons vieram. Das sinuosas encostas, uma lúgubre lamúria desceu como uma neblina, densa e vagarosa, e abateu-se pairando sobre os telhados. Aterrorizou as gentes da aldeia e afugentou os mais corajosos para dentro das suas casas, que se fecharam e trancaram a sete chaves. Até os que não eram crentes passaram a rezar, a partir daquela noite...
Rapidamente vieram os avisos para ninguém se aventurar nas profundezas dos bosques e para as crianças não atravessarem a orla da floresta. Destruiu-se a última ponte e ergueram-se barricadas.
Assim viveu a aldeia até ao último dos seus dias, até ser abandonada e os últimos velhos morrerem, sem nunca ninguém ter prosseguido para norte, ou sequer ter-se avistado vir de lá alguém.
A vegetação tornou-se mais cerrada, as ramagens tão escuras e apertadas que os raios de sol deixaram de conseguir penetrar e acabaram por extinguir aquele choro sombrio e inconsolável, abafando-o e aprisionando-o nas masmorras da floresta.
Ninguém mais ouviu, mas isso não significava que (ela) não estivesse lá.
Este texto decorre do desafio lançado aqui.
My favourite so far.
ResponderEliminar(eu adoro retoques de terror...)
Um fav! Que bom =)
ResponderEliminar(eu também!)