sexta-feira, 13 de abril de 2012

Prisão

Há muito tempo atrás, numa aldeia refugiada num vale, vivia uma triste rapariguinha de cabelos escorridos.
Levantava-se muito cedo para trabalhar nos campos com os pais, mas antes ainda ajudava a mãe com o pão na casa do forno. Quando voltava não tinha folga, como as outras crianças, para brincar e fazer ecoar risos e gargalhadas pelas lajes dos caminhos, até o sino da igreja consolidar a hora do jantar.
Era a única filha do casal. À noite, ajudava um pouco mais nas lidas da casa, enquanto o pai corrompia-se na taberna lá do sítio. Atravessara aquela idade em que pensava, primeiro, em si própria. Agora só lamentava pela sua mãe, largada sozinha longas horas noite dentro.
Com o pai, não tinha estabelecido grande afinidade. Ninguém era violento com ninguém, mas também não havia espaço para consolo. Para ela, não passavam de dois estranhos forçados a conviver na mesma casa.
Assim, antes de se deitar, abeirava-se à janela do seu quarto, com os olhos negros lançados ao longe, nas montanhas, depois dos bosques e da floresta, e sonhava com as terras além.
Mas logo veio a doença, que lhe roubou a mãe e, de uma certa forma, levou-lhe também o pai, que passou a prolongar, ainda mais, as madrugadas na companhia do vinho. E uma noite ele não voltou...
Ficou completamente sozinha. Ela e os crucifixos silenciosos da mãe à beira do leito.
Então, um dia, atravessando com o olhar os picos frondosos das montanhas, decidiu partir. Aventurou-se, sozinha, de sacola às costas, depois de transpor a última ponte sobre o último braço do rio, que separava a aldeia da incivilização, através da floresta e dos segredos lá mantidos, para nunca mais regressar. Todos conheciam os perigos que os bosques encerravam. As armadilhas dos caçadores, os animais selvagens, as cascatas resvaladiças, as plantas venenosas, a fome...
Não se soube mais dela e, depois disso, o mais certo era que o seu nome deixasse de ser comentado nas conversas entre os aldeãos, e até que o seu rosto fosse esquecido, mas isso não aconteceu. O nome dela ainda surge nas histórias de Inverno à lareira, bem como os fatídicos destinos que se lhe afiguraram, mas nos serões de outras casas, longe da aldeia.
Isto porque, na noite seguinte à sua partida, os sons vieram. Das sinuosas encostas, uma lúgubre lamúria desceu como uma neblina, densa e vagarosa, e abateu-se pairando sobre os telhados. Aterrorizou as gentes da aldeia e afugentou os mais corajosos para dentro das suas casas, que se fecharam e trancaram a sete chaves. Até os que não eram crentes passaram a rezar, a partir daquela noite...
Rapidamente vieram os avisos para ninguém se aventurar nas profundezas dos bosques e para as crianças não atravessarem a orla da floresta. Destruiu-se a última ponte e ergueram-se barricadas.
Assim viveu a aldeia até ao último dos seus dias, até ser abandonada e os últimos velhos morrerem, sem nunca ninguém ter prosseguido para norte, ou sequer ter-se avistado vir de lá alguém.
A vegetação tornou-se mais cerrada, as ramagens tão escuras e apertadas que os raios de sol deixaram de conseguir penetrar e acabaram por extinguir aquele choro sombrio e inconsolável, abafando-o e aprisionando-o nas masmorras da floresta.
Ninguém mais ouviu, mas isso não significava que (ela) não estivesse lá.

Este texto decorre do desafio lançado aqui.



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