terça-feira, 17 de julho de 2012

A noite é uma criança (4)


Demorou cerca de duas horas até chegar junto dos portões. Estava muito frio, mas só quando se viu tão perto do negrume daquela estrutura é que sentiu o corpo arrepiar-se. Mais próximo do que tinha previsto, percebeu o movimento de um guarda, apenas. Felizmente que este parecia estar muito relaxado, para não dizer distraído. Pensou que não era hábito acontecer muita coisa por ali, o que não o surpreendeu...
Recolheu-se nos arbustos despidos de folhagem. Por um lado, deu graças pela lua não ter aparecido, mas por outro, estava inquieto. Não era bom presságio quando na noite anterior tinha estado lua cheia.
Tinha ouvido falar de algumas incoerências e ambiguidades em relação àquele sítio, histórias nebulosas e de deixar os cabelos em pé, especialmente desde que ocorrera a queda daquela ala do palácio.
Perguntou-se sobre o que acontecera depois disso. Das histórias que ouvira restavam agora meros fragmentos, não só porque ele era novo quando as conheceu, mas também porque ninguém tinha certezas de nada. Provavelmente muito do que ouvira tinham sido especulações, resultado da imaginação e fantasia de quem as contava, e depois de quem as ouvia para as reproduzir ao seu jeito. Lembrava-se de uma sombra de algo nas ruínas, um padrão que se repetia todos os anos no aniversário da princesa, crianças que desapareciam, homens que partiam para não voltar e mulheres abandonadas que votaram a sua vida ao esquecimento... Tabor também tinha dúvidas sobre se seriam memórias ou criações do seu próprio espírito inventivo nas várias madrugadas que se seguiram. Mas depois de aqui chegar, e de se deparar com um reino que parecia não existir, deixou de saber o que pensar.
O palácio estava muito exposto. Só conseguira ali chegar sem ser visto pelas condições do céu noturno e, aparentemente, pela escassa guarda real, mas não queria arriscar contornar as muralhas pois a vegetação terminava junto da vala pedregosa em redor e os terrenos além dela pareciam inóspitos e demasiado descobertos.
Estava a sondar as possibilidades que tinha quando ouviu um bater de asas e viu um corvo, tão negro quanto aquela estranha noite, esvoaçar sobre as elevadas paredes e desaparecer. À medida que seguia o voo selvagem da ave, o seu olhar decaiu mais abaixo, à altura da superfície das águas da vala, e distinguiu uma sombra mais escura que a escuridão da pedra.
O fosso era estreito e ele estava suficientemente perto para se sentir nauseado pelo cheiro das águas paradas à demasiado tempo, pelo que ainda conseguiu diferenciar, uns bons palmos acima, as marcas anteriores do nível normal, e percebeu que estavam agora muito abaixo dele. Tabor já tinha dado conta do período de seca que aquela região atravessava pelo leito do rio que descia a encosta a Oeste. As chuvas e as neves que em breve viriam seriam muito bem vindas, embora ainda não soubesse por quem...
Voltou o seu pensamento para a mancha escura que tinha acabado de detetar. Tinha uma ideia sobre o que poderia ser, mas para confirmar teria que descer o fosso e entrar naquelas águas sombrias. A imagem enregelava-o ainda mais, e não era só por considerar a sua baixa temperatura. Afinal não é que tivesse outra alternativa, a menos que quisesse regressar, o que estava longe de ser uma opção!
Agachou-se até ficar estendido no chão e arrastou-se silenciosamente até o terreno inclinar-se sobre o fosso. Chegado aí, colocou-se na vertical e foi descendo, apoiando os pés e as mãos nos socalcos que foi encontrando. Não foi tarefa difícil porque o fosso não era muito íngreme, mas assustava-o a ideia de alguma pedra resvalar, denunciando-o. Teve sorte...
Um dos seus pés mergulhou, então, na água. Não tinha sequer chegado perto da realidade sobre quão gelada estava, e também da sua viscosidade. Sentiu repulsa a ponto de vomitar, mas conseguiu conter-se. O que via de positivo nisso era talvez o som abafado ao mover-se.
Desejou não ter mais surpresas, fossem quais fossem, e afastou do pensamento a ideia de um bicho qualquer que o puxasse para as profundezas do fosso, mas rapidamente percebeu que o nível das águas dava-lhe pela altura do peito. Mais uma vez pensou que as defesas do palácio estavam muito lassas, mas ao mesmo tempo também especulou sobre a necessidade delas existirem. Viveria algum mal terrífico dentro daquelas paredes?
Finalmente, chegou à muralha. Olhando debaixo para cima concluiu que era vertiginosa! Sentiu-se muito pequeno e submisso, como quando estava no sopé da colina a admirar a silhueta do palácio em contraluz, mas ao verificar que afinal estava certo quanto à origem daquela sombra escura na base da muralha, sentiu também uma ponta de excitação duvidosa. Ali estava, diante dele, o seu bilhete de entrada para uma aventura de onde podia não regressar...

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