quarta-feira, 30 de maio de 2012

No fim do mundo

Kaya vivia no topo de um penhasco, sobre as cristas do mar azul. Naquela zona, o vento chicoteava as praias desertas, os rochedos escarpados e as planícies agrestes, que se estendiam numa circunferência delimitada pelas águas do oceano, uivando desde o amanhecer até de madrugada. Uma ou outra casa despontavam nos campos secos, todas semelhantes entre si, e a parca vegetação que se atrevia a crescer neles resistia aos vendavais e às tempestades que, com frequência, assomavam a região. Não havia muito mais naquele fim de mundo.
Todos os dias, sem exceção, Kaya passava o final de cada tarde debruçada sobre a imensidão que a rodeava, alta e hirta. Determinada a aguardar por algo ou alguém que a levasse para longe, dedicava-se a reviver os seus sonhos, um por um, enquanto o sol se deitava no horizonte e o entardecer lhe gelava a alma.
Não sabia que tipo de embarcação esperar, mas sabia que o seu bilhete de saída viria do mar. Era o que lhe diziam os sonhos, todas as noites, acordando-a para só voltar a adormecer quando o céu se tingia de um tom mais claro. Pouco tempo depois vinha a sua mãe para a despertar.
Quando partisse, os seus pais iriam ficar completamente sós. O seu único irmão tinha desaparecido muitos anos antes, mergulhando no abismo durante uma brincadeira mortal na falésia. O seu pai nunca recuperara da dor, ainda se lançando frequentemente no mar picado dentro de um bote humilde. Ela não sabia o que podia ele estar à procura, depois de todos aqueles anos, mas nunca se atrevera a perguntar. Na verdade, não havia muito que se dissesse ou ouvisse naquela casa, sendo que qualquer tentativa de diálogo caía rapidamente no silêncio, quebrado apenas pelo tilintar da loiça que a mãe se aprontava a arrumar, apesar de nunca haver nada fora do sítio.
Fazia algum tempo que ela soubera que iria partir. Foi quando os seus sonhos começaram, iluminando a única saída possível. Não havia mais nada para ela ali, a não ser um buraco sem fim que a oprimia. Não queria dizer que esta decisão não a magoasse, mas todos os dias já lhe doía a ausência de tudo...
Contemplava, então, as ondas bravias com o verde baço dos seus olhos, que também haviam perdido o brilho, à espera daqueles olhos que tinham voltado a acentuar o azul do mar, dos revoltos cabelos pretos, dos lábios molhados e salgados e daquele abraço compacto onde sentira o seu corpo docemente esmagado sobre o chão áspero do casco do barco. Continuava à espera de tudo aquilo outra vez, desde aquela primeira noite, há catorze luas atrás...

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Murmúrios da vila

O meu dia começou ali, naquele instante. Não usava relógio, mas o sol dizia-me que eram perto das cinco da tarde. Na verdade, eu não sei interpretar o horário do sol, mas guiei-me pela sombra do palácio, em pleno mês de Agosto, já que o local me era bem familiar.
As silhuetas avançavam ao longo das ruas sinuosas, tricotando caminho como se tivessem todo o tempo do mundo, avançando e retrocedendo, hesitando diante de um mapa e apontando o dedo para vários lugares ao mesmo tempo.
As minúsculas partículas de vidro incrustadas nos caminhos deixaram de refletir a luz, mas ninguém deu por isso, a não ser eu. Ainda era cedo, mas o sol já iniciara o seu lento e secreto percurso de fuga, enquanto dezenas de pessoas inundavam a praça central, igual a todos os dias.
Sorvi lentamente o cigarro, retendo a voluta de fumo até lacrimejar. Então, soltei-a, contemplando a imagem distorcida pela cortina trémula que ameaçava brotar dos meus olhos, moldando-se e trasformando-se numa massa duvidosa e indefinida, até a minha visão voltar ao normal. Esbocei uma careta de repreensão. Devia deixar de fumar, se é que valia a pena...
Entre os meus dedos, a coluna de cinza ameaçava tombar. Juntei-lhe o peso ambíguo da minha consciência e não resistiu muito mais. Por fim, atirei o cigarro ao chão e amachuquei-o nas lajes da ladeira que conduzia às traseiras do palácio.
Apesar de toda a azáfama diária da vila, naquele momento, Sintra ainda se entorpecia entre sonhos ancestrais. De noite é que velava a lua, ou a ausência dela, e todos os mistérios que se imiscuíam nas sombras. Normalmente, eu fazia parte, quando começassem os murmúrios...
Demorei-me um pouco mais na minha ociosidade, projetando, sem querer, a mente para trás.
Em diante, a serra elevava-se num terreno acidentado até à haste da bandeira. Lembrei-me do profundo prazer ao soerguer-me uma tarde sobre a varanda de um rochedo, lavado em suor, escutando-a sacudir ao vento. Detinha o mundo a meus pés, debaixo de uma chuva miudinha que fingia as lágrimas nos meus olhos, e nesse dia o meu espírito magoado e revolto encontrara um rumo mais apaziguado. Daí para a frente, trepar aquela encosta íngreme passou a fazer parte de um processo de cicatrização que infligi a mim mesmo.
Assim que os sinos tocaram confirmando as horas, apeei caminho. Desta vez, não havia lugar nem hora marcada, embora hora nunca tivesse havido.
Em breve, os telhados cobrir-se-iam de ouro e das janelas abertas seriam desvendados a pouco e pouco os fragmentos da história de cada família, menos a minha. A minha estrada é a mais vazia e solitária de todas...

Este é um texto que encontrei durante as arrumações da semana passada e que escrevi há cerca de uns sete ou oito anos. No entanto, não resisti a dar-lhe um tratamento ao transcrevê-lo para aqui. 

terça-feira, 15 de maio de 2012

No pântano mal-amado (3)

Quanto mais sentia o pulsar crescer nas paredes do interior da árvore, também a névoa que invadira seus pensamentos se dissipava permitindo-lhe ver mais claramente.
Levantou-se no escuro. Só agora entendia o que se tinha passado e deixava-se tomar pela apreensão. Tacteou o chão frio procurando não esbarrar em nada. Se fosse silencioso, talvez conseguisse escapar sem ser notado.
Até ali tudo bem. Chegado à porta, encostou nela o ouvido e esperou. Não escutou nada para além do esgravatar na madeira. Duvidava quantos e que tipo de animais invisíveis viviam dentro daquelas paredes mofadas e debaixo do chão empoeirado, e era preferível que assim se mantivesse.
Entreabriu a porta, que chiou baixinho. Empurrou-a, lentamente, espreitando. A porta da rua estava aberta deixando o luar entrar, hesitante. Isso nunca acontecia, mas ele desconhecia. Naquela noite, a lua lançava um brilho refulgente fora do normal, unindo-se aos elementos que trabalhavam com um único propósito. Sentiu uma leve brisa tocar o ar pesado e distinguiu lá fora um gotejar lento como se as águas mórbidas do pântano finalmente se movessem. Conseguia ouvir o batimento da antiga árvore, e o da terra também, dentro de si, fundindo-se nele com se fossem um só, crescendo como uma labareda.
Até que uma voz esganiçada cortou o ar e abalou o fogo dentro dele.
- Os meus amiguinhos não te deixam dormir? Posso tratar deles, se quiseres. Eu posso ser muito convincente, por vezes!
A criatura nojenta e esquisita aparecera, repentinamente, à sua frente, sem ele ter percebido como. Parecia ter dois buracos negros no lugar dos olhos, que emitiam um brilho sombrio àquela luz, e pareceu-lhe novamente que ficavam maiores. Tentou resistir, procurando a voz da terra, da árvore e das águas lamacentas. Sentiu os pensamentos tornarem-se de novo prisioneiros, mas agora também a lua se apoderava dele, chamando-o para a luz.
Puxou-se das trevas e perguntou:
- Quem és tu?
O duende riu-se como um tolo, andando de um lado para o outro, rondando-o e tentando atravessá-lo com o olhar afiado sempre que encontrava uma oportunidade. Algo o estava a deixar inquieto.
- Ogru, é como me chamam. Sou uma criatura da terra e da noite e vivo neste pântano há mais tempo do que me é possível recordar. Queres que faça mais chá? Não recebo visitas muitas vezes, o que me faz um tanto indelicado... - a voz dele tinha tantas entoações como a de um oportunista, esforçando-se por o confundir e ludibriar. Mas algo estava terrivelmente errado, pensava o duende malvado. Desta vez, estava a ser difícil! Quanto mais arremessava a sua mente na dele para a dominar, recuava em ricochete. E aquele barulho ensurdecedor... Tum-tum-tum-Tum-TUM-TUM! Os seus ouvidos... contorcia-se de dor! "Pára!" - gritava, silenciosamente.
- Não quero o teu chá! - bradou o rapaz, determinado. - És uma criatura das trevas, Ogru, e um trapaceiro! Não me voltas a enganar com os teus truques baratos.
O duende nunca tivera uma aparência agradável, nem que tentasse, mas depois de ser desafiado encarnou uma personagem ainda mais primitiva e vil. O seu corpo cresceu, os seus olhos ficaram brancos e das suas mãos nasceram garras cobertas de germes.
Ao mesmo tempo, o rasto inflamado da lua espalhava-se no chão à sua volta. Este parecia dobrar-se sobre si próprio, ondulando como as ondas do mar bravo. Então, as raízes soltaram-se, como presas indomáveis, precipitando-se contra a criatura ainda mais feia e deformada, que se defendeu ao saltar bruscamente para os lugares onde ainda reinava a penumbra.
- Recebi-te na minha casa e tu atreves-te a provocar-me e a insurgir-te contra mim? - protestou ele, no escuro. - Nada, nem ninguém, vai conseguir vencer-me e libertar-te! Mesmo que saias desta árvore maldita, o pântano será a tua masmorra. Juro por toda o mal e enfermidade que existe neste mundo! Estás muito longe de casa, criança... - a voz silenciou-se e desapareceu na escuridão.
O pó levantara-se, dificultando-lhe ver e a respirar. Não havia sinais de Ogru, mas o chão continuava a agitar-se e as paredes ameaçavam abater-se esmagando tudo o que encontrasse pelo caminho. O trilho cintilante da lua esbatia-se através do caos que se instalara e retrocedia em agonia.
Ele não sabia que lidava com poderes demasiado antigos, forças tão ancestrais e selvagens que na maioria das vezes desconheciam a razão. Agiam por impulso e emoção, comandados pelo instinto, e facilmente deixavam-se levar, propagando-se como fogo, e às vezes transformando-se nele. As suas causas não conheciam limites. Eram imprecisos e buscavam, unicamente, o equilíbrio entre todas as coisas.
Escutou uma gargalhada distante, conhecida, vibrar através da poeira. Em frente, a porta encolhia-se. Desconhecia se era a árvore que se afundava no chão ou se era a casca que se alongava para encerrar qualquer acesso para o covil do mal, e se ele não se resolvesse ficaria para sempre sepultado nas profundezas daquele tronco.
Avançou aos tropeções no chão móvel, transpondo as raízes vivas e os ramos que se recolhiam de fora para dentro como lanças afiadas cujo único desejo era enterrarem-se em carne fresca.
A entrada, ou saída conforme a perspetiva, já era pequena e não parava de reduzir. Era agora ou nunca! Inspirou todas as partículas de ar - e de pó! - que conseguiu e projetou-se com todo o ímpeto que tinha. A sua sorte foi que um braço de tronco tinha encontrado o trajeto e empurrara-o já no ar, atirando-o com a força primitiva e antepassada que se alimentava daquele lugar.
Ele aterrou com a cara no chão, do outro lado, a poucos centímetros da lama. Olhou para trás, a tempo de ver a porta encerrar-se eternamente, acorrentada por todos os séculos para trás. Depois, e finalmente, é que se deitou de barriga para cima, permitindo-se a um minuto de repouso, enquanto se inundava pelo luar brilhante, no entanto frio...

segunda-feira, 14 de maio de 2012

No pântano mal-amado (2)


Numa daquelas noites horrorosas, o duende tinha ido lá para fora sentar-se numa pedra à beira do pântano intoxicado. Tinha as suas curtas pernas estendidas ao luar, como uma criança inofensiva, e assobiava com silvos desengonçados que arranhavam o cérebro.
Estava abafado, como sempre! E cheirava a decomposição. As rãs e os sapos escondiam-se dele no baixo manto de neblina que roçava nas águas negras e lentas, cobrindo o pântano até à altura do seu pescoço. Não queriam ser o seu próximo jantar!
De repente, tudo à sua volta ficou ainda mais silencioso. O duende suspendeu a sua ária agreste e endireitou-se, chacoalhando os velhos ossos. Havia um timbre diferente no ar.
Passado pouco tempo, distinguiu um vulto cinzento ao longe, contornando um tufo alto de ervas ressequidas e seguindo pelo trilho grosseiro por onde já nunca ninguém passava.
Captou o som dos seus passos com as suas orelhas pontiagudas e sorriu com um ar travesso. Ele ouvia melhor que muitos animais!
- Uma pessoa para mim! Toda para mim... - sibilou entre dentes, como uma serpente venenosa.
Atirou-se da pedra para o chão. O salto não era grande, mas ele era muito baixinho, até para um duende. Curvado sob o peso da sua corcunda, correu, parecendo uma cepa torta, para a curva mais adiante que fazia esquina com o antro da sua casa. Ali ficou à espera, deitado debaixo de uma monstruosa raíz, o que lhe pareceu ser uma eternidade!
Até que o som dos passos ficou mais alto, misturando-se com a subtil respiração de quem já caminhava fazia tempo, e ele viu a sombra aparecer, estranhamente mais alumiada pelo luar do que ser ali alguma vez o fora. Sentiu a inveja e o desdém. Mais tarde ajustaria contas com aquela lua empertigada!
Quando o homenzinho estranho passou por cima dele, esticou o pé e deu-lhe um pontapé seco. Este tropeçou e quase jurou que ouvira uma gargalhada trocista. Admirado, olhou em volta. Viu a raíz onde julgara ter prendido o pé e para seu espanto esta parecia encolher-se humildemente. Depois, o duende saltou atrás das suas costas, sobressaltando-o mais uma vez.
Agora sim, estava assustado! À sua frente tinha um ser deveras perturbador, um rosto cheio cravado em cima de um corpo magro e viscoso. Sentiu o cheiro a peixe morto. Repelido pela imagem daquela massa disforme, olhou para os seus pés, desproporcionais ao resto da figura. E aquelas órbitas mais escuras que as águas do pântano, onde vagueava perdido há largas horas desde que enveredara por um atalho, um caminho tão sinistro que - entendia agora - só podia tê-lo guiado para um lugar tão soturno como aquele...
- Estás perdido! Este é um lugar cheio de perigos a esta hora da noite. Anda, vem comigo!
Ouviu a peculiar criatura falar através de uma voz que lhe arrepiou os cabelos. Queria recusar, mas não conseguiu. Os seus olhos pretos cresceram e atraíram-no atrás dela, seguindo-a até ao outro lado da grande árvore onde tinha esbarrado - acreditava ele, ainda...
O duende continuava a falar, aliciando-o com comida para saciar a fome e uma cama para repousar o corpo cansado. Ele tinha acabado de fazer chá e biscoitos, ouvia, uma receita assombrosa da sua avó, "que descanse sem paz!" - teria ele dito?... não... ouvira mal, com certeza!
Viu-o atirar para trás uma porta minúscula cavada no tronco, que o obrigou a dobrar-se quase até ao chão para conseguir entrar. Cheirava pior lá dentro. Viu a criatura dirigir-se a um canto e acender uma vela verde.
- Sê mal-vindo à minha casa! - ele nem percebeu... - Senta-te.
Sentou-se na cadeira que ele virara para si. Ouviu um suspiro quando se sentou, mas não sabia de onde vinha.
O duende tirou um prato sujo da pia onde colocou uns bolos pretos. Serviu-lhe um chá vermelho, que tinha um sabor esquisito. Ainda tinha o travo e a impressão na língua da penugem que sentira.
Naquele momento, tentava descansar num quarto tão pequeno e desarrumado que parecia uma despensa. Não tinha janelas, tal como em toda a casa. E depois de ter apagado a vela - arrependera-se amargamente dessa ação -, a única luz era a dos milhares e insignificantes pares de olhos dos bichos que habitavam nas rugosidades das paredes circulares.
Estranhava, não só, tudo aquilo, como o facto de ter aceite ser levado sem levantar nenhuma questão, desde o momento em que trocara o olhar com o daquele ser que parecia ter saído de um conto de terror. Sentia-se pesado e embriagado, e sabia que não tinha sido do chá, pois já se sentia assim antes de penetrar nas entranhas daquela árvore.
Mas havia mais! Algo que, juntando a toda a excentricidade do que estava a viver, iria impedi-lo de fechar os olhos e de cair num sono atormentado. Deitado sobre um pano velho e amarelado que o seu anfitrião estendera no chão coberto de pó, o seu coração batia no mesmo compasso que o pulsar que pudera distinguir quando o silêncio da madrugada se instalou. Algo se debatia dentro daquela casca intemporal, fluindo nos veios do tronco e animando gradualmente um amaldiçoado estado latente, uma tremenda força que acordava ao fim de tantos e longos anos!

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Pausa

Não tenho atualizado este blog tão assiduamente quanto gostaria, mas uma força maior impeliu-me a atrasar um pouco este projeto.
Comprometi-me a atingir uma meta até ao dia de hoje, terminar uma etapa no livro que estou a escrever. Tem tudo a ver com disciplina e método, para além de ser uma obrigação para comigo e talvez, futuramente, para com aqueles que me lêem!
Mas na próxima semana prevejo já estar mais dedicada ao Um Conto por Dia.

Obrigada! E beijinhos.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

No pântano mal-amado (a dark tale for children)

Ele era um duende detestável, que vivia numa gigantesca árvore, tão feia e estranha quanto ele. A sua pele era cinzenta e translúcida, conseguindo ver-se os ossos quebrados através dela. Os cabelos eram escassos, mas mesmo assim conseguiam desgrenhar-se uns nos outros como os pêlos no interior do nariz de uma velha bruxa. E os seus olhos eram como duas cavernas escuras sem fim, rasgadas numa montanha agreste e solitária, cheia de rugas e borbulhas sebosas.
Quando ele falava, a boca distorcia-se num esgar assustador e a sua voz arrastava-se como uma lesma pestilenta, trazendo o bafo dos dentes podres, de onde se viam pendurados os restos de carne dos ratos que comera muitos anos antes.
Levantava-se todos os dias quando o sol se punha e deitava-se ao mesmo tempo que a pobre lua, que se encolhia de agonia cada vez que era obrigada a espalhar a sua sombria luz sobre ele. Ao pequeno-almoço, ele comia as órbitas e as patas dos gafanhotos e fazia chá com as asas dos morcegos. Arrotava sempre no fim, derrubando na mesa as aranhas das suas nefastas teias, armadas entre as velas que eram feitas com a cera dos seus ouvidos.
Nunca fazia a cama, nunca arrumava a casa, nem nunca a limpava. Também nunca recebia visitas, para quê dar-se ao trabalho? Mas tinha um plano, para o caso improvável disso acontecer, que era fazer ainda mais lixo e porcaria como sinal de boas-vindas, ou má fé! Era conforme para onde ele estivesse virado, que normalmente era para o lado que fosse mais endiabrado e maléfico. Na verdade, ele tinha muitas ideias para partidas de mau gosto, mas ainda não tinha tido oportunidade de as mostrar. Pois é. Ele era uma criatura muito desagradável e ninguém no pântano apreciava a sua companhia.
Até a casa onde ele vivia, uma abominável acácia, que em tempos fora bela e majestosa, desejada por todos os carvalhos, castanheiros e até pelos cedros - tão elegantes! -, perdera a sua frescura e murchara, reduzindo-se a uma mancha grotesca no lamaçal, quando o duende deformado se mudara para dentro dela. Lembrava-se do dia em que perdera todas as suas folhas num choro lamentável e quando todas as árvores a abandonaram, afastando-se dela perante a sua repugnante imagem.
Agora não passava de um grande e retorcido tronco oco, sem alma e sem vida, cujos ramos desmaiavam na lama, inabaláveis ao vento - se ele sequer se atrevesse a voar até ali - e a todas as intempéries. Nem uma única ave noturna tinha coragem de aterrar nas suas ramagens cheias de nódulos e quistos. O próprio sol recusava-se a dar-lhe calor!
Perdera toda e qualquer esperança de voltar a vestir as suas roupas de Primavera, de dar sombra aos casais de namorados e de brilhar refulgente no topo de uma colina verdejante. Sim, porque as árvores andam, sabiam? Mas muito devagarinho, os seus passos demorando anos para elas não serem notadas.
Que trágico destino, o dela...


Do último desafio.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Prisão (3)

Ainda estava congelado de medo perante a voz sobrenatural que soara através das ramagens entrelaçadas da floresta e que, entretanto, se perdera na escuridão. Mas isso não o impediu de recuar com o pânico estampado no rosto ao ver a vegetação afastar-se como que por magia e a abrir caminho, o estritamente necessário para permitir a passagem de um indivíduo franzino.
Um mocho piou ao longe. Depois, silêncio. Absoluto.
Procurou na sua mala uma lanterna e apontou o feixe de luz para dentro do bosque, mas este era tão escuro que engolia a débil iluminação escassos metros adiante.
Ponderou as hipóteses que tinha. Concluiu que a mais sensata seria voltar para trás, pois duvidava até que fosse seguro esperar pelo amanhecer para avaliar se deveria ou não atravessar a orla da floresta. Contorná-la levaria dias. Não tinha provisões suficientes, nem sequer para regressar pelo mesmo caminho, e segundo o mapa que trazia consigo não encontraria nenhuma povoação num raio de, no mínimo, quarenta quilómetros, para qualquer uma das direções. Avançar agora parecia-lhe uma loucura desmarcada!
Pulava de plano em plano, se é que se podia chamar de estratégia a delírios e imprudências, que quase nem deu por um ponto de luz efémero a pairar vindo não sabia de onde, até se deter suspenso no ar alguns passos para dentro do cerrado, para logo, em seguida, recolher-se novamente, lenta e cadenciadamente, afastando-se da entrada.
Iria arrepender-se amargamente, pensava ele quando se atirara para puxar a sua sacola e cruzara a fronteira entre o prado e a floresta, e não demorou muito tempo, pois mal deu dois passos, em segundos os ramos das árvores estenderam-se como braços negros medonhos, bloqueando a fenda no arvoredo que estivera desimpedida momentos antes, tragando-o completamente.
Colocou a mochila às costas com dificuldade, pois o caminho era, tal como imaginara, muito apertado. Roçava nas folhas ásperas como as pedras do deserto e nos galhos rugosos que lhe pareciam inquebráveis de tão duros que eram. Os troncos das árvores eram manchas menos escuras que os ínfimos buracos de negrume que escapavam das ramagens retorcidas e exibiam nódulos e tocas disformes que lhe lembravam rostos defeituosos.
Ali não sentia calor como na vasta planície onde estivera deitado, pelo contrário, arrepiava-se com o bafo fantasmagórico que flutuava à sua volta e lhe trespassava o corpo como o gume de uma lâmina com séculos de história. Não esperava nada diferente, visto que os raios de sol eram imediatamente capturados, impedidos de entrar e iluminar o que não era digno de luz, ou de vida. Ali, o solo era sombrio, carregado e domínio do submundo, os seres não poderiam ser naturais e qualquer vida que pudesse existir seria aquela para além da morte.
Ele consolidava esta certeza à medida que avançava atrás do ponto luminoso; a lanterna tinha falhado quando o caminho se fechara atrás de si, e sabia que continuava a fechar-se enquanto andava, assim como não valia a pena mudar as pilhas, pois nada mundano era suposto funcionar ali.
Tinha a pele do rosto arranhada pelas unhas das árvores e a roupa rasgada em retalhos pelos dedos que o puxavam e tentavam prender. A toda a volta a floresta murmurava, troçando dele como aquela gargalhada que ouvira, parecia-lhe que já noutro tempo. Sentia a cabeça pesada, estava confuso e via tudo à sua volta com pouca clareza. Não sabia o que o impelia a continuar, puxando pelo seu corpo e lutando contra a perversidade daquela natureza sobrenatural.
Foi, então, atirado para o que lhe parecia ser uma enorme clareira fechada sobre si mesma. Percebeu que havia um braço de rio que se circundava a ele próprio, e que as suas águas eram pútridas e tão mortas quanto aqueles bosques. Para dentro, elevava-se um penedo cinzento e no seu cimo jazia um castelo igualmente escuro que parecia ser um prolongamento da própria rocha, mas que se elaborava à medida que crescia, composto por paredes que, em baixo, eram insipidamente despidas e, mais acima, decoradas com janelas excessivamente trabalhadas expondo um minucioso detalhe, e coroado por inúmeras torres pontiagudas.
Não havia forma de transpor o barranco, pelo menos à primeira vista, e se observasse com atenção conseguiria ver que o próprio castelo, prisioneiro da floresta, estava todo ele coberto por trepadeiras selvagens e silvas que eram perfeitas guilhotinas. E ainda recaía sobre aquela construção de outro mundo, uma luz espectral, cinzenta e esverdeada, iluminando ou ocultando a sua silhueta, lançando mais sombras do que clarividência.
A frágil luz que seguira até ali tinha desvanecido diante dos seus olhos, para desvendar com uma perplexidade apavorada aquele cenário abismal. Não acreditava naquilo que os seus olhos viam, apesar de não enxergar ainda em pleno e se debater contra uma mente lenta e tumultuosa, nem no crescente lamento arrastado que subitamente veio de dentro das paredes rudes e maciças do castelo, um choro mórbido e deprimente que galgou o abismo putrefacto de águas imóveis e abalou as fundações da fortificação e a secularidade da floresta que se recolhia o mais que podia...

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Definhar imortal (3)

A noite era de Primavera, mas mais quente, numa antecipação urgente do Verão.
Vinham os dois de um jantar soberbo seguindo-se um espetáculo musical cheio de cor e movimento, que a teria deliciado como mel não fosse a história que aprisionava no peito, atribulada e carregada de pesar. Momentos antes, tinha-o visto formular um pedido de casamento, romântico, doce, com todos os floridos que uma mulher podia desejar. Ela não chegara a dar uma resposta...
Ele conduzia agora em silêncio, uma quietude demasiado pesada para se conseguir ignorar. Enquanto as paisagens fugiam para trás, ela ainda escutava a música inebriada e observava, sem poder contemplar, as personagens pairando sobre o palco, acalmando-a com os feixes de luz de vários tons azuis, uma recordação extraviada na sua consciência insondável.
Respirou fundo, sem antever os minutos que se seguiriam, e falou. Tentou suavizar as palavras, mas não havia como. Elas soariam sempre duras, egoístas, lesivas. Contou-lhe como o tinha traído, revelando-se cruamente, apontando a sua incorreção e a culpa que a consumia. Tinha sido um impulso, um delito, e desejava que não fosse irreversível, por tudo o que tinham conquistado juntos. Se pudesse...
A ausência de som apoderou-se deles novamente, inexorável como um julgamento. Não notou uma desaceleração mínima sequer na condução, nem uma ligeira alteração nos traços que compunham o plácido rosto dele.
Ele escutara-a até ao fim, mas as últimas palavras de indulgência soavam-lhe já remotas, de tal forma o sentimento dúbio crescia dentro dele, esforçando-se por o conter. Diante de si viu a estrada dobrar-se sobre si própria até se desfazer perante os braços penetrantes do arvoredo. Tinha abdicado de tanto, por nada. Lutara contra todos e, mais importante, contra si mesmo, evitando os caminhos tortuosos e estrangulando a sua alma desfolhada e imperfeita, mais do que uma vez. Para nada!
Abrandou e encostou o carro, esforçando-se por erguer a voz no ar.
- Sai.
Havia uma inflexão na voz dele que a fez desviar o rosto, com desdém; mas não dele.
Abriu a porta, aguardando expectante durante um segundo, mas nada mais veio para a confortar, pelo que saiu, deixando-se engolir pela espessura da noite amadurecida.
Estava a pouco menos de um quilómetro de casa, mas era tarde e a noite tinha escurecido ainda mais quando, de forma algo imprevisível, um conjunto de nuvens densas e sobrepostas ocultaram a lua cheia. Os saltos dos seus sapatos no alcatrão amplificavam o silêncio da madrugada, incomodando-a ao ponto de escolher seguir na vala da estrada, apesar de não facilitar a caminhada.
Não olhou para trás, e isso não foi um ato irrefletido, de maneira que quando o toque do seu telemóvel estremeceu o ar e ela demorou a atender - a sua voz diferente, cautelosa, no entanto meiga - não o viu chegar nem previu o gume que perfurara as suas costas, uma, duas e três vezes...
Experimentou a dor dilacerante, a pele rasgar-se como um tecido grosseiro. E depois uma dor seca, quando caiu com um som abafado sobre o silvado. Sentiu algo húmido escorrer, cobrindo-lhe o dorso até se afundar nas fendas da terra, e viu que respirava com dificuldade, absorvendo o cheiro e a textura do pó. Depois a dormência, um piedoso embuste e um alívio amargo, deixando de sentir, primeiro o corpo, depois o chão. Mas ainda ouviu a música ao longe e viu também as cores, e através delas sentiu paz, uma última vez.
Estava um calor estranho naquela noite. A luz da lua desfalecia no céu escuro. Já não viu as mãos que tantas vezes envolvera nas suas afastar-lhe os cabelos desmaiados e roçar-lhe timidamente a face. Não viu, nem sentiu. Assim como não escutou o som dos passos que reconhecia afastar-se com relutância do seu corpo, nem a ignição do motor do automóvel, a dezenas de metros dali, ecoar para dentro do bosque.
Não soube quanto tempo depois se levantou, nem teve consciência do ato em si. Parecia estar um pouco tonta e, além disso, apercebera-se de um retardamento nas suas memórias. Caminhou alheada do mundo em redor, como que impulsionada para um lugar que não sabia qual, tudo lhe parecendo sombriamente distante, a luminosidade lúgrube e fria.
Demorou algum tempo até a melodia soar ténue nos seus ouvidos e ela conseguir captar fragmentos soltos na noite. Tinha a ideia de ter estacionado ali perto. Lembrava-se do muro e das trepadeiras. Mas ainda não sentia nada...

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Um texto sobre a saudade

Não há como não sentir o travo rural de uns dias na aldeia, acordando com o embate das fortes e pesadas chuvas nas telhas de barro. O frio arregaça-nos a pele e entranha-se nos ossos, dentro de quatro paredes de pedra, revestidas, do lado de fora, e nesta altura do ano, por uma delicada camada de musgo. Em lado nenhum, como lá em cima, o conforto de uma manta perdida sabe tão bem.
À noite, os serões acontecem à lareira. As histórias são de fantasmas e outros temas do sobrenatural, entre risos e gargalhadas, dos mais jovens aos mais velhos. Mas não há rostos pálidos de medo, só o rubor das bochechas aquecidas.
Os pratos sujos do jantar permanecem longas horas na mesa, desalinhados após o repasto, os legumes da horta escrupulosamente dispostos a um canto, rejeitados pelos mais novos. Uns comem à mesa, outros no sofá.
Um desses dias amanheceu serrano, em paragens familiares, lá para a Serra da Estrela, onde a paisagem ainda é alva, apesar de Maio estar quase aí.
Vai um sorriso complacente para aquele que nos apontou da janela do restaurante o quarto onde havíamos pernoitado sete anos antes; antes de mandarmos vir os filhos. Um vislumbre de nostalgia ronda-nos por momentos, não por perda, mas por um passado revisitado, num presente tão mais desejado.
E também um especial agradecimento para o caricato Sr.º Jacinto que, depois do pequeno-almoço, abriu a minha mala para que eu pudesse guardar lá dentro uns simpáticos potes de mel. "Com os cumprimentos da casa!"
Mas nem tudo foi rústico, para contrastar! Porque nós somos quem somos, e a pasmaceira da aldeia só nos alicia quando combinada com uma discreta dose de insurreição. Pelo que houve lugar para um welcome drink no ice lounge, um brinde aos dias que se seguiriam. E sushi, num ambiente trendy, a mesa e os bancos corridos em tons cor de rosa. Com tempo para relaxar e reencontrar um casal migratório de amigos entre colunas e colinas estudantis - a eclética cidade de Coimbra! -, porque a amizade dita instruções rigorosas sobre não deixarmos de estimar sob pena desta não perdurar.
Por fim, vieram as manhãs solarengas nos parques e as tardes preguiçosas em casa, numa antecipação aos serões de cinema, com pipocas e maltesers à mistura. Duas vezes fomos ao salão de jogos. E duas vezes a adolescência voou, provocante, diante dos nossos olhos. "Vai uma corrida de carros para matar saudades?"
E assim, à nossa distinta maneira, fomos uma vez mais testemunhas de como há dias perfeitos, seja onde for, desde que acompanhados pelas pessoas certas. É um desfecho cliché, mas eles existem por um motivo!