sexta-feira, 22 de junho de 2012

A noite é uma criança (2)


Ela era uma princesa da noite e vivia num antigo palácio na encosta de uma colina. O seu destino para todas as madrugadas era um alpendre abobadado, cujas paredes revestiam-se de murais esbatidos pelo tempo.
Depois de todos na casa se recolherem para os seus aposentos, incluindo as aias que dormiam no quarto ao lado, Ariadne levantava-se da sua cama e escapava-se para os corredores silenciosos, percorrendo-os, sempre com a graciosidade com que era conhecida, até à grande janela que emoldurava toda a parede a sul.
Conhecia todas as formas de brisa noturna que a envolviam quando abria os vidros e pisava as lajes do chão com os seus pés descalços. E encostada ao gradil florido, sustentado por colunas tão lisas quanto os seus dias eram monótonos, envergando uma fina capa de tecido sobre o seu corpo esguio, permitia ao luar curvar-se perante o seu encanto gelado...

Numa dessas noites, a lua não apareceu, escurecendo tudo em redor. O céu parecia limpo e as estrelas cintilavam como em todas as noites ancestrais.
Daquela única vez, Ariadne trazia um punhal à cintura e aguardava pacientemente recolhida nas sombras do alpendre.
Esperou até escutar o som de um galho a quebrar no jardim, próximo dali, e, instintivamente, tocou na lâmina por baixo das suas vestes. Nunca a tinha utilizado. Não sentia medo. Não sentia coisa alguma... Chamavam-lhe A Princesa da Noite, fria e dura como eram as noites no Norte. Os seus olhos negros eram glaciais e implacáveis, forçando cada homem ou mulher que a enfrentasse a subjugar-se a ela. Não havia nada que não fosse feito à sua vontade.
Ao final da tarde daquele dia, ao mesmo tempo que os raios dourados do sol se escapavam do prado, recebera uma visita na varanda da janela do seu quarto. Sentada numa cadeira, diante do seu reflexo imparcial, viu chegar um corvo, pousando no peitoril e virando os olhos inquietos na direção dela. Ao aproximar-se viu que a ave não fugira, enfrentando e igualando a escuridão do seu olhar. Duas criaturas da noite, tão longe do lugar onde pertenciam...
Quando abriu a portada percebeu que trazia um bilhete preso numa das patas. Levantou a mão, devagar, e a ave voou inesperadamente para o seu braço. Depois de a deixar desatar o papel da sua pata, o corvo levantou novamente voo, não sobre as árvores, mas embrenhando-se nas suas ramagens. Por momentos, parece-lha que esta afrouxara o voo como se fosse deter-se sobre algo, ou alguém...
Olhava agora para o bilhete que tinha desenrolado entre os seus dedos, cuja mensagem era apenas um local e hora.
E ali estava ela, como em todas as noites e como em nenhuma delas, à espera, aconchegando-se no gume do seu punhal de encontro às suas coxas...

Sem comentários:

Enviar um comentário