quarta-feira, 4 de abril de 2012

Muros

A cozinha tinha uma luz estranha naquela noite. Lá fora, a lua crescia possante num céu sem estrelas.
Por um lado, o ambiente estava agradavelmente quente e eu deixava-me embalar pela algazarra dos miúdos que, depois de um ano letivo demasiado longo, viam-se agora soltos numa arena aberta, com o mundo pela frente e poucas páginas de vida, escritas com a leveza própria da juventude.
Sentada muito direita na mesa, segurava as mãos uma na outra. Ao centro, o arranjo de flores murchava lentamente. Amanhã traria um ramo de gerânios da praça, anotei mentalmente.
Escutava-o por trás de mim a tirar a chaleira do lume e a dispor calmamente os pratos no balcão. Abriu a porta de um armário, depois outra.
- As chávenas estão à direita. - disse-lhe. Não acertava uma.
Ele não respondeu, nem tão pouco o ouvi suspirar perante o desdém que se conseguia adivinhar no meu tom de voz. Desta vez abriu a porta certa e terminou de fazer o chá, em silêncio. Só se ouvia a noite de verão, e com ela as notas de música que perdêramos em alguma altura.
Quantas mais coisas haveriam ainda por dizer? Verdades egoisticamente camufladas para me proteger. Proteger-me dele ou protegê-lo de mim? Ou protegê-la, a ela... Pensamentos agrestes que me corroíam até lugares insondáveis.
Ele sentou-se à minha frente, com as duas chávenas fumegantes nas mãos, admirando-me com os olhos seguros de um felino, parcialmente cobertos pelo vapor que se elevava do chá. Com aquele olhar de quem continuaria a magoar-me propositadamente ao longo dos anos.
Por fim falou, com uma voz profunda que soaria sempre doce aos meus ouvidos. Perguntou-me, como se isso importasse:
- Queres falar?
Queria. Queria falar tanta coisa. Lutava contra um abismo de palavras com espinhos, pronta para o magoar de volta. Mas não havia forma. Entre nós havia um muro impenetrável, solidificado com o peso e a dureza dos nossos anos em conjunto. Na verdade, não havia nada de novo para dizer. Olhei através da janela, com os meus sonhos projetados para um futuro que já não existia para nenhum dos dois.
- Não. - respondi.

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