terça-feira, 15 de maio de 2012

No pântano mal-amado (3)

Quanto mais sentia o pulsar crescer nas paredes do interior da árvore, também a névoa que invadira seus pensamentos se dissipava permitindo-lhe ver mais claramente.
Levantou-se no escuro. Só agora entendia o que se tinha passado e deixava-se tomar pela apreensão. Tacteou o chão frio procurando não esbarrar em nada. Se fosse silencioso, talvez conseguisse escapar sem ser notado.
Até ali tudo bem. Chegado à porta, encostou nela o ouvido e esperou. Não escutou nada para além do esgravatar na madeira. Duvidava quantos e que tipo de animais invisíveis viviam dentro daquelas paredes mofadas e debaixo do chão empoeirado, e era preferível que assim se mantivesse.
Entreabriu a porta, que chiou baixinho. Empurrou-a, lentamente, espreitando. A porta da rua estava aberta deixando o luar entrar, hesitante. Isso nunca acontecia, mas ele desconhecia. Naquela noite, a lua lançava um brilho refulgente fora do normal, unindo-se aos elementos que trabalhavam com um único propósito. Sentiu uma leve brisa tocar o ar pesado e distinguiu lá fora um gotejar lento como se as águas mórbidas do pântano finalmente se movessem. Conseguia ouvir o batimento da antiga árvore, e o da terra também, dentro de si, fundindo-se nele com se fossem um só, crescendo como uma labareda.
Até que uma voz esganiçada cortou o ar e abalou o fogo dentro dele.
- Os meus amiguinhos não te deixam dormir? Posso tratar deles, se quiseres. Eu posso ser muito convincente, por vezes!
A criatura nojenta e esquisita aparecera, repentinamente, à sua frente, sem ele ter percebido como. Parecia ter dois buracos negros no lugar dos olhos, que emitiam um brilho sombrio àquela luz, e pareceu-lhe novamente que ficavam maiores. Tentou resistir, procurando a voz da terra, da árvore e das águas lamacentas. Sentiu os pensamentos tornarem-se de novo prisioneiros, mas agora também a lua se apoderava dele, chamando-o para a luz.
Puxou-se das trevas e perguntou:
- Quem és tu?
O duende riu-se como um tolo, andando de um lado para o outro, rondando-o e tentando atravessá-lo com o olhar afiado sempre que encontrava uma oportunidade. Algo o estava a deixar inquieto.
- Ogru, é como me chamam. Sou uma criatura da terra e da noite e vivo neste pântano há mais tempo do que me é possível recordar. Queres que faça mais chá? Não recebo visitas muitas vezes, o que me faz um tanto indelicado... - a voz dele tinha tantas entoações como a de um oportunista, esforçando-se por o confundir e ludibriar. Mas algo estava terrivelmente errado, pensava o duende malvado. Desta vez, estava a ser difícil! Quanto mais arremessava a sua mente na dele para a dominar, recuava em ricochete. E aquele barulho ensurdecedor... Tum-tum-tum-Tum-TUM-TUM! Os seus ouvidos... contorcia-se de dor! "Pára!" - gritava, silenciosamente.
- Não quero o teu chá! - bradou o rapaz, determinado. - És uma criatura das trevas, Ogru, e um trapaceiro! Não me voltas a enganar com os teus truques baratos.
O duende nunca tivera uma aparência agradável, nem que tentasse, mas depois de ser desafiado encarnou uma personagem ainda mais primitiva e vil. O seu corpo cresceu, os seus olhos ficaram brancos e das suas mãos nasceram garras cobertas de germes.
Ao mesmo tempo, o rasto inflamado da lua espalhava-se no chão à sua volta. Este parecia dobrar-se sobre si próprio, ondulando como as ondas do mar bravo. Então, as raízes soltaram-se, como presas indomáveis, precipitando-se contra a criatura ainda mais feia e deformada, que se defendeu ao saltar bruscamente para os lugares onde ainda reinava a penumbra.
- Recebi-te na minha casa e tu atreves-te a provocar-me e a insurgir-te contra mim? - protestou ele, no escuro. - Nada, nem ninguém, vai conseguir vencer-me e libertar-te! Mesmo que saias desta árvore maldita, o pântano será a tua masmorra. Juro por toda o mal e enfermidade que existe neste mundo! Estás muito longe de casa, criança... - a voz silenciou-se e desapareceu na escuridão.
O pó levantara-se, dificultando-lhe ver e a respirar. Não havia sinais de Ogru, mas o chão continuava a agitar-se e as paredes ameaçavam abater-se esmagando tudo o que encontrasse pelo caminho. O trilho cintilante da lua esbatia-se através do caos que se instalara e retrocedia em agonia.
Ele não sabia que lidava com poderes demasiado antigos, forças tão ancestrais e selvagens que na maioria das vezes desconheciam a razão. Agiam por impulso e emoção, comandados pelo instinto, e facilmente deixavam-se levar, propagando-se como fogo, e às vezes transformando-se nele. As suas causas não conheciam limites. Eram imprecisos e buscavam, unicamente, o equilíbrio entre todas as coisas.
Escutou uma gargalhada distante, conhecida, vibrar através da poeira. Em frente, a porta encolhia-se. Desconhecia se era a árvore que se afundava no chão ou se era a casca que se alongava para encerrar qualquer acesso para o covil do mal, e se ele não se resolvesse ficaria para sempre sepultado nas profundezas daquele tronco.
Avançou aos tropeções no chão móvel, transpondo as raízes vivas e os ramos que se recolhiam de fora para dentro como lanças afiadas cujo único desejo era enterrarem-se em carne fresca.
A entrada, ou saída conforme a perspetiva, já era pequena e não parava de reduzir. Era agora ou nunca! Inspirou todas as partículas de ar - e de pó! - que conseguiu e projetou-se com todo o ímpeto que tinha. A sua sorte foi que um braço de tronco tinha encontrado o trajeto e empurrara-o já no ar, atirando-o com a força primitiva e antepassada que se alimentava daquele lugar.
Ele aterrou com a cara no chão, do outro lado, a poucos centímetros da lama. Olhou para trás, a tempo de ver a porta encerrar-se eternamente, acorrentada por todos os séculos para trás. Depois, e finalmente, é que se deitou de barriga para cima, permitindo-se a um minuto de repouso, enquanto se inundava pelo luar brilhante, no entanto frio...

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