segunda-feira, 9 de julho de 2012

A noite é uma criança (3)


O seu nome era Tabor e ouvira falar sobre ela há muito tempo atrás, ainda ambos eram crianças. Uma princesa que nascera num país distante, o último a Norte antes das Terras Geladas, na noite mais curta e gelada do ano, ao mesmo tempo que acontecia uma terrível tempestade que devastara parte do reino e arruinara completamente toda a ala nordeste do palácio que, por motivos desconhecidos, ficara vedada desde então.
O que a tornava especial e distinta de todas as outras raparigas, para além do berço real, era a sua beleza crua e inigualável. Era a única filha de um rei sem rainha, desde que a sua esposa definhara no leito decorrente de uma doença forasteira. A partir desse desolado acontecimento, o rei enclausurara-se na sua dor e Ariadne crescera sem pai e sem mãe, apenas com várias aias à sua volta para suprir todas as suas necessidades e vontades, tornando-a numa pessoa fria e aparentemente sem coração.
Quando Tabor atingiu a idade adulta, partiu sem dar justificações. Não tinha pais, apenas um tio muito afastado que nunca lhe dera muita importância. Assim, numa madrugada aleatória, deixou o deserto em busca das histórias que o embalaram nas noites quentes, sob as estrelas, muitos anos antes. Contos que o deixaram acordado muitas delas a imaginar a beleza incomparável de uma rapariga que ainda nem era uma mulher e já deixava muitos homens a falar.
Mas nem tudo era em bonança... Havia um lado sombrio dessas histórias, e que ninguém nunca soubera desbravar adequadamente. Descreviam uma beleza negra intocável, capaz de aniquilar a alma humana. Depois, as vozes emudeciam, deixando cair no esquecimento as outras que se levantavam timidamente para colocar algumas questões: "como?", "e mais?"... Alguém suspirava, vultos acomodavam-se nas suas peles e pouco tempo depois ouviam-se os roncos de quem caía no sono.
Até que as histórias deixaram se ser contadas e o povo esqueceu-as. Tabor ficou sem saber se tinham sido produto da imaginação de alguém, mas ele imortalizara a imagem dela e nunca foi capaz de a esquecer...
A incrível jornada que empreendera foi longa. Muitas luas passaram, viu e sentiu as estações mudarem até voltarem a ficar menos percetíveis, com a diferença de que os dias e as noites eram mais gelados do que no seu país. Atravessou dunas, comeu o pó dos trilhos, embrenhou-se nos perigos das florestas, percorrendo a maior parte do caminho em solidão, ele e os animais, até chegar a povoações onde não se permitiu demorar muito tempo. Fez as perguntas que tinha a fazer, sem se alongar em detalhes. Teve ofertas para passar as noites acompanhado, algumas que recusou, outras não, mas no fundo nunca deixara de se sentir ausente, partindo na maioria das vezes enquanto todas elas ainda dormiam, para conhecer novas terras, novas gentes e novas mulheres, e para partir novamente, uma e outra vez.
Os dias já se notavam mais curtos, e foi numa das poucas manhãs solarengas, próximo do fim da sua aventura, que viu o palácio reluzir ao longe, no topo de uma colina que se preparava para receber as neves da próxima estação. Um pequeno bosque empobrecido flanqueava as suas muralhas e, por detrás, viam-se as crinas alvas de uma montanha que fazia fronteira com as Terras Geladas, onde poucos se aventuravam pela rigorosidade do Inverno permanente e das suas tempestades.
As histórias eram, então, verdadeiras! - pensou, em voz alta.
Admirou as paredes e as torres altas do palácio, os arcos, as abóbodas, os telhados e as varandas. Arquitetura simples mas pretensiosa, até o seu olhar cair nas ruínas a nordeste, o que deduziu ser a ala que ficara destruída quase duas décadas antes.
Deixou-se ali ficar o resto do dia, numa pequena clareira junto a um braço do rio, até anoitecer. Quando a lua apareceu decidiu-se a pegar nos seus parcos pertences e avançou como uma sombra junto ao arvoredo, que ia ficando cada vez mais rasteiro, e que ladeava uma planície até ao sopé da colina onde se edificava o palácio.
Aquele cenário não fazia sentido, a começar por não haver reinado ou cidade ou coisa alguma sobre que reinar...

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