sexta-feira, 20 de abril de 2012

Férias

Este blog vai estar de férias a partir de hoje até dia 30 de Abril. Voltarei nessa altura com muitas mais histórias para contar. Porque a inspiração nas férias é mais do que muita!
Até lá!

Definhar imortal (2)

Ali estava ele, sentado em cima da pedra fria. Mais do que sentado, sentia-se largado e despojado de tudo, até da alma.
Já não chorava, mas a dor não diminuíra, simplesmente se consolidara, preservada como aquela pedra.
Estava prestes a escurecer. O céu tingia-se de laranja, em breve estaria rosado, depois arroxeado, azul e no final negro como as asas de um corvo, permitindo à lua e às estrelas brilharem fulgorosamente, como um sinal, uma marca de qualquer coisa. No seu caso, interpretava-o como uma memória do esplendor dos anos atrás. Tantos anos que já devia ter perdido a conta. Mas ele sabia quantos, contava-os pesadamente.
Naquele dia particular do ano, ele dirigia-se sempre ali, sem exceção. Aquela teria sido a data em que se vira casado com ela, e aquele seria mais um dos anos em que estariam a celebrar, se ela ainda estivesse com ele. Não estava, nem nunca mais iria estar, e a inevitabilidade desse facto abatia-se ainda sobre ele como uma rabanada de vento, uma onda possante ou um muro a cair. Esmagando tudo.
Aquele cenário magoava-o, iluminando sombriamente o que já estava morto. Mas não havia luz para ele, desde que ela morrera, ou mesmo antes, muito antes. Não havia vida, só um teatro de marionetas, um jogo que o impulsionava diariamente a fazer tudo aquilo que fazia. Ali, ele permitia-se morrer com ela, abandonando o seu corpo velho e cansado, gasto pela mágoa, e viajando através do tempo, ou para trás ou para uma realidade à parte, um futuro diferente, alternativo.
Recordava-a emoldurada naquelas janelas antigas e podres. Era magnífica, tão bela, à luz do candeeiro a óleo, atravessando o quarto com aquela camisa de dormir transparente que o espicaçava. Distinguia-lhe o sorriso provocante, exibindo o corpo generoso, tão doce, tão quente...
Escutava o seu riso ecoando pelos recantos do jardim e assistia novamente às perseguições meio que infantis, testemunhadas pelas seis estátuas de rostos sentenciosos e arrogantes, e àquela tarde em que quebraram a quietude das águas do lago, atirando-se como dois adolescentes apaixonados e ignorando todas e mais algumas regras da decência e do pudor.
Imaginava-os novamente juntos debaixo do alpendre, sentados sobre a mármore numa tarde de Verão, rodeados por risos mais infantis, risos de crianças a brincar; e muitos anos depois, mais próximo da idade dele naquele presente insípido e inanimado, as mãos deles enrugadas, depositadas uma sobre a outra, confirmando a firmeza e a durabilidade de uma união. Inalterável. Tão certo como o facto dela não fazer mais parte deste mundo.
Depois ele ouviu o ferro do portão centenário chiar na noite que entretanto caíra. Não viu nada, nem ouviu mais nada. O portão estava aberto numa noite sem som, sem movimento e sem cor, como uma evidência estranha e esquiva. Mas sentiu o perfume, aquela melíflua fragrância que reconheceria entre todas as que existissem no mundo inteiro. E não soube o fazer, nem o que pensar...

Mais um desafio que viu um fim!

*Os créditos da imagem aqui.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Retrato de uma amizade

As afinidades e os interesses nem por isso eram consonantes naquele grupo de quatro amigas.
Em relação à personagem que me vou focar, talvez a paixão pela leitura e a mística de uma das três, as convicções e a projeção de sonhos de outra e um pouco o gosto pela música da que sobrava, para além de achar esta excecionalmente engraçada e expontânea.
Mas definitivamente não se pelava por moda e desconhecia todas as tendências, atuais e passadas, e nem sequer fazia a mínima ideia das da próxima estação naquele ano. Dizem que há cores que predominam numas e noutras, ela não sabia nada disso. Curiosamente, eu também não, pelo que não me arrisco a alongar muito o assunto... Era um tanto ou quanto deslavada, sem um estilo próprio, odiava comprar roupa e frustrava-se ao final de dois minutos a especular sobre o que é que combinava com o quê.
Também não promovia o culto da corpo, não ia ao ginásio todos os dias, não se delongava na pele casca de laranja, até ficar deprimida, e achava mirabolante as várias correntes que se vendiam sobre as dietas. Sim, apreciava a ideia de um corpo esbelto, mas desejava acima de tudo sentir-se bem e saudável. Apesar de na maioria das vezes não se sentir nem uma coisa, nem outra.
E coisa que a deixava com um nó nos neurónios e arranhava-lhe a paciência eram as conversas demasiado femininas, ocas e trespassadas de clichés.
Todas estas coisas encontravam refúgio ali, um pouco mais que outras, umas personagens envergando mais, outras menos, em relação a cada uma das áreas.
Assim, quando marcavam encontros nas casas umas das outras, não esquecia de levar o seu portátil e, enquanto as três lançavam-se ao artesanato caseiro para depois vender nas feiras, criando peças de bijutaria absolutamente fenomenais (se conseguisse avaliar com olhos de quem entendia realmente da coisa), navegava pela internet e até escrevia qualquer coisa. Habitualmente, não levava nenhum livro porque já tinha em casa das três uma qualquer leitura, todos com marcador a localizar a página onde ficara no último encontro.
Ainda assim, ela estava lá e, inclusivamente, participava nos preparativos da tarde, com a confeção de um bolo, bolachas ou biscoitos para adoçarem os trabalhos. Aprendeu um pouco sobre pastelaria e até gostou. A isso ela deu hipótese. Talvez um dia se dignasse, também, a pegar numa revista de missangas, ou coisa que o valha, e a deixar de lado a sua arrogância e as ideias preconcebidas sobre a matéria.
A verdade é que sentia-se bem naquele ambiente, sentada na mesa ou numa poltrona desviada para poder ver, e nunca se sentiu excluída, dando ou não atenção ao que acontecia no sofá, próximo de si.
- Sinónimo de curioso? - atirava ela, por vezes, para o ar, compenetrada nas suas coisas.
- ... estranho - respondia a que se interessava pelas letras.
- O que estás a escrever? - perguntava outra sem desviar os olhos do alfinete.
A que não se ouvia estava distraída, como na maioria das vezes.
O que interessava, no fim de contas, era que as quatro partilhavam do mesmo prato de bolo, e às vezes do mesmo garfo, permaneciam unidas há já duas décadas e muitas mais adiante, se a vida o permitir...

terça-feira, 17 de abril de 2012

Prisão (2)

Havia um rapaz, que desconhecia a história que assombrava a aldeia. Era um forasteiro, um viajante do sul, que errara por desertos extensos, montanhas áridas e lagos secos.
Percorreu as calçadas solitárias da aldeia, através das ruínas silenciosas. Espionou as casas, com curiosidade, cujas portas e janelas tinham sido vedadas com tábuas, do lado de fora. Escutou uma madeira solta chiar ao vento, algures. E chutou, distraídamente, uma garrafa vazia diante da taberna, que rolou e ecoou exageradamente no largo da igreja.
Achou aquele cenário absolutamente invulgar e, apesar dos seus olhos nómadas experientes, não conseguiu evitar um calafrio. Mas foi junto às barricadas e aos destroços da última ponte que estacou, com apreensão. O que poderia ter causado tamanho pavor às gentes daquela aldeia para se isolarem daquela maneira? Teriam abandonado as suas casas e as suas vidas à custa do quê? Será que tinham realmente fugido ou algo, fora do anormal, acontecera? Tantas perguntas sem resposta...
Lançou o olhar além do braço do rio, a corrente fina de água deslizava sobre os seixos limosos suavizando a paisagem. Observou a planície descoberta e o sopé das montanhas, onde começavam os bosques, uma massa tão escura como nunca viu. O que escondiam aqueles cerrados, para lá das colinas e de uma floresta tão tenebrosa?
Próximo de si, uma das barricadas tinha cedido, provavelmente, com o avançar do tempo. Pelo estado dos materiais supunha que teriam passado muitos anos desde que a aldeia ficara à mercê de si própria.
Aproximou-se a avaliou o caminho até ao rio. Na verdade, não havia caminho. Seria difícil e perigoso, mas a prática dizia-lhe que não era uma missão impossível, por isso, desceu, agarrado às pedras, à terra e até aos tufos resistentes de vegetação e apoiando-se nos socalcos do despenhadeiro.
Finalmente, os seus pés pisaram o leito do rio. O lençol de água era muito fraco e, em alguns pontos, a profundidade máxima chegar-lhe-ia, talvez, aos joelhos. Não podia era descuidar-se com as pedras soltas e escorregadias.
Antes de avançar, tirou a mochila que trazia às costas e guardou nela as botas e as meias que descalçou. Depois de arregaçar as calças, apeou caminho, aliviando e refrescando os pés cansados na água translúcida.
Do outro lado, o terreno era menos acidentado e mais arrelvado. Flores arroxeadas despontavam, dispersas no campo, e desta vez sentiu, com igual prazer, os pés pisarem a erva aquecida pelos últimos raios de sol do dia.
Teria que acampar para a noite e escolheu a orla da floresta, a nordeste, para o efeito.
Confortou o estômago com apenas água e bolachas. Esperava reabastecer-se na aldeia que, então, descobriu estar abandonada. Pelo menos encontrara água fresca, onde enchera o seu cantil. Mas amanhã teria que pescar e caçar, antes de entrar na floresta. Ou melhor, antes de descobrir uma entrada, dado a vegetação ser tão peculiarmente frondosa.
A noite estava quente, o vento tinha amainado umas horas antes, mas cobria-se com uma manta que tinha tecido com a pele de uma cabra que caçara no Outono passado e descansava, agora, debaixo de um salgueiro, atravessando com o olhar as folhagens até ao céu estrelado. Era a noite mais escura desde há um mês atrás, por isso viam-se tantas estrelas, milhares de pontos luminosos a brilhar debilmente num manto negro.
Estava quase a adormecer, perdendo-se nas malhas de sonhos supersticiosos, quando uma brisa gelada desceu sobre o seu rosto e um galho partiu-se muito próximo de si.
Levantou-se de um salto, ainda a tempo de seguir o som fugidio de arbustos a remexerem. Pareceu-lhe, para seu assombro, o som de uma gargalhada indecorosa a desaparecer nas profundezas da floresta...

segunda-feira, 16 de abril de 2012

As Brumas do Oriente (2)

Era uma fêmea, ele sentiu-o quando a viu ondular atrás das colunas tombadas sobre a areia e da cauda emanou uma áurea, brilhando misteriosamente nas águas escuras, uma luz azul revelando um vulto esguio e voluptuoso, de longos cabelos flutuantes e reflexos marinhos numa pele sobrenatural.
De alguma forma admirou-se. Não esperava este encontro e o encanto ameaçou os escudos que tinha erguido em torno do seu corpo mortal.
Nunca seria um duelo mítico. Não estava à altura das histórias de glória e de imortalidade desta extraordinária criatura e do submundo onde pertencia. Não tinha dúvidas que o esmagaria entre as suas presas colossais, fosse homem ou mulher. Se já se sentia uma anedota, agora sentia-se humilhado. Haveria alguma forma de reclamar as pedras sem ter que lutar? Os fragmentos de esperança jaziam naufragados entre as ruínas silenciosas daquele mar.
Desviou, involuntariamente, o olhar para cima, milhas abaixo da superfície, onde certamente pairava um luar sombrio, navegando sobre o plácido manto sem sequer esboçar perturbar o seu espelho. Ainda lhe sobrava algum tempo para continuar a respirar, com segurança, debaixo de água.
Não possuía a profundidade e a reverência de um mito, mas trazia consigo uma pequena fracção de poder e magia daquele mundo. Não estava ali aleatoriamente, e só isso concedia-lhe valor e uma hipótese, ainda que a sombra dela.
Largou as dúvidas na corrente e enfrentou a sua profecia. Lançou o olhar no cenário em diante, para um cemitério que não permitia nenhuma forma de culto, de esplendorosas edificações, arqueadas pelo desgaste do tempo, que tinham-se tornado a morada de peixes e de outros animais marinhos.
Percorreu os blocos de pedra, a vegetação contígua e os bancos de areia, esforçando-se por tornar a sua visão mais nítida, imerso naquele imenso lençol baço. Até que os seus olhos encontraram duas pérolas brilhantes, redondas e temerárias, que sobressaíram do negrume de um pórtico onde os destroços se aglomeravam numa massa maior, e avançaram, um passo, o brilho frio crivado no seu corpo como facas afiadas.
Assistiu, com temor e repulsa, ao olhar que lhe congelou a alma, alçando um corpo monstruoso, alucinadamente curvo e carregado de escamas aguçadas. Duas extensas fileiras de dentes retorcidos, um focinho rugoso e encrispado e uma crina prateada, assemelhando-se à lâmina de várias espadas sobrepostas, compunham a cabeça daquela terrível criatura, guardiã dos mares, que observava, incrédula e ameaçadoramente, aquele que tivera a audácia de invadir o seu território interdito!

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Prisão

Há muito tempo atrás, numa aldeia refugiada num vale, vivia uma triste rapariguinha de cabelos escorridos.
Levantava-se muito cedo para trabalhar nos campos com os pais, mas antes ainda ajudava a mãe com o pão na casa do forno. Quando voltava não tinha folga, como as outras crianças, para brincar e fazer ecoar risos e gargalhadas pelas lajes dos caminhos, até o sino da igreja consolidar a hora do jantar.
Era a única filha do casal. À noite, ajudava um pouco mais nas lidas da casa, enquanto o pai corrompia-se na taberna lá do sítio. Atravessara aquela idade em que pensava, primeiro, em si própria. Agora só lamentava pela sua mãe, largada sozinha longas horas noite dentro.
Com o pai, não tinha estabelecido grande afinidade. Ninguém era violento com ninguém, mas também não havia espaço para consolo. Para ela, não passavam de dois estranhos forçados a conviver na mesma casa.
Assim, antes de se deitar, abeirava-se à janela do seu quarto, com os olhos negros lançados ao longe, nas montanhas, depois dos bosques e da floresta, e sonhava com as terras além.
Mas logo veio a doença, que lhe roubou a mãe e, de uma certa forma, levou-lhe também o pai, que passou a prolongar, ainda mais, as madrugadas na companhia do vinho. E uma noite ele não voltou...
Ficou completamente sozinha. Ela e os crucifixos silenciosos da mãe à beira do leito.
Então, um dia, atravessando com o olhar os picos frondosos das montanhas, decidiu partir. Aventurou-se, sozinha, de sacola às costas, depois de transpor a última ponte sobre o último braço do rio, que separava a aldeia da incivilização, através da floresta e dos segredos lá mantidos, para nunca mais regressar. Todos conheciam os perigos que os bosques encerravam. As armadilhas dos caçadores, os animais selvagens, as cascatas resvaladiças, as plantas venenosas, a fome...
Não se soube mais dela e, depois disso, o mais certo era que o seu nome deixasse de ser comentado nas conversas entre os aldeãos, e até que o seu rosto fosse esquecido, mas isso não aconteceu. O nome dela ainda surge nas histórias de Inverno à lareira, bem como os fatídicos destinos que se lhe afiguraram, mas nos serões de outras casas, longe da aldeia.
Isto porque, na noite seguinte à sua partida, os sons vieram. Das sinuosas encostas, uma lúgubre lamúria desceu como uma neblina, densa e vagarosa, e abateu-se pairando sobre os telhados. Aterrorizou as gentes da aldeia e afugentou os mais corajosos para dentro das suas casas, que se fecharam e trancaram a sete chaves. Até os que não eram crentes passaram a rezar, a partir daquela noite...
Rapidamente vieram os avisos para ninguém se aventurar nas profundezas dos bosques e para as crianças não atravessarem a orla da floresta. Destruiu-se a última ponte e ergueram-se barricadas.
Assim viveu a aldeia até ao último dos seus dias, até ser abandonada e os últimos velhos morrerem, sem nunca ninguém ter prosseguido para norte, ou sequer ter-se avistado vir de lá alguém.
A vegetação tornou-se mais cerrada, as ramagens tão escuras e apertadas que os raios de sol deixaram de conseguir penetrar e acabaram por extinguir aquele choro sombrio e inconsolável, abafando-o e aprisionando-o nas masmorras da floresta.
Ninguém mais ouviu, mas isso não significava que (ela) não estivesse lá.

Este texto decorre do desafio lançado aqui.



quinta-feira, 12 de abril de 2012

As Brumas do Oriente

Dizia-se que quem possuísse as mágicas Gemas do Dragão comandaria as tropas através do pó e além da vastidão do mar. Ouvira-o em histórias e canções de guerra, numa noite sem luar, em torno de uma fogueira e à beira da estação que carregaria os ventos gelados e as tempestades do norte.
Em breve, as asperezas do Inverno ameaçariam as casas e o gelo avançaria sobre as águas espelhadas, diminuindo drasticamente as chances das buscas, se não as tornasse numa missão impossível.
O guardião das gemas era o próprio dragão, Deus dos oceanos, dos mares, dos rios e dos lagos.
Habitando as moradas submersas que quisesse, navegava sob os mantos azuis, atravessando grutas profundas, cruzando os céus quando precisava e voltando a mergulhar quando entendia. Flutuava entre os destroços de palácios revestidos de algas e engolidos pela fúria das águas, coroado por elevados tetos abobadados e rodeado de esquecidos tesouros refletidos nas suas escamas.
Não passavam de mitos, mas aqueles eram tempos conturbados, acumulados de dor e infelicidade. E os tempos de escuridão eram lembrados por trazerem consigo réstias de esperança e utopias.
Pensava nisso, resguardado do frio por grossas mantas que se abatiam sobre o seu corpo, desejando a queda do império, os seus inimigos derrotados e, quem sabe, o esplendor da coroa e do bastão do Grande Rei, do Imperador, a glória do próprio Deus do Sol para si!
Ignorava as sombras dos ramos que atravessavam a janela do seu quarto e se debatiam nas paredes nuas, desenhando cenários ameaçadores, os uivos do vento cortante, que gelavam a própria alma e escapam das frinchas para oscilar a vela em cima do móvel, e também a luz sombria e misteriosa que descia dos astros na noite escura.
Desdenhava os sinais do perigo que lhe eram revelados com complacência e a humildade que os seus pais tinham-se esforçado por lhe transmitir. Já não se importava com nada disso. Era tarde demais! A benevolência não os salvara da tortura e do ferro das espadas que tinham jurado fidelidade ao povo.
Certificar-se-ia de que os culpados cairiam perante o peso do seu punho e conhecessem a mágoa e a vingança que o tinham moldado. Levaria à sua frente quem e o que quer que fosse que se lhe atravessasse no caminho. Era o que tinha prometido...

terça-feira, 10 de abril de 2012

Os cinco e o caso da praia (despretensiosamente)

Zé era uma rapariga de cabelos rebeldes e encaracolados que vivia em Kirrin com os seus pais e o seu cão Tim. Não era uma rapariga como outra qualquer, facilmente confundida com um rapaz e orgulhando-se dessa sua característica particular.
Quem conhecia (mal) a Zé diria que era mal educada, desagradável e bicho-do-mato. Difícil de agradar e ser agradada, passava a maior parte do tempo a brincar com o Tim ansiando pelas férias passadas com os seus primos, Júlio, David e Ana.
Os cinco (contando com o Tim, claro!), ávidos por aventura, encontravam sempre forma de se meterem em sarilhos (e sair deles airosamente, também!), e juntos contaram às crianças do antigamente histórias em todos os tipos de cenários imaginários: na vastidão do mar, em ilhas isoladas, nas altas montanhas ou em grutas profundas, em mansões assombradas e outras ruínas abandonadas, nas densas florestas, em lagos negros e até nos circos forasteiros...
Criado por uma célebre escritora, este grupo unido imortalizou o conceito de aventura no seio infanto-juvenil e inspirou a geração que veio a seguir. Eu, inclusive.

O vento chicoteava as janelas circulares do farol e empurrava a chuva picada. Tinha escolhido uma bela noite para discutir com o pai, à mesa de jantar, e fugir do casal Kirrin, com o fiel Tim seguindo-a como uma sombra, como sempre.
Correu instintivamente, sem parar, e foi ter onde sempre ia quando se aborrecia. Percorria as crinas das dunas, explorava as grutas ao longo dos penhascos, lançava no ar paus para o Tim brincar e preguiçava na areia quente durante horas até se atrasar para o jantar. Não havia palmo que não conhecesse naquela enseada ou pedaço de mar onde não tivesse mergulhado.
Procurando abrigo da tempestade, refugiou-se no farol entrando por uma grelha rachada. Descobrira-a uns dias antes e, entusiasmada, resolvera manter um segredo só seu, camuflando a entrada com pedras que arrastara da praia até ali.
Encharcada, a tremer de frio, subiu até à bateria e esperou que a chuva aliviasse, embora suspeitasse que iria trovejar. Por aquele andar regressaria a casa só no dia seguinte, deixando os pais loucos de preocupação. Sem dúvida nenhuma que lhe esperava o maior castigo de todos os tempos...
Encostou-se num canto à parede gelada e húmida para se sentar com o Tim, mas algo lá fora despertou-lhe a atenção.
Protegendo-se da luz que piscava regularmente sobre as escarpas acidentadas, Zé viu, para lá das ondas assanhadas, uma pequena embarcação ser sacudida pelo mar. Distinguiu dois vultos escuros que manobravam o barco com dificuldade, em direção à praia. Dali o panorama não parecia estar fácil, com o mar encrispado abrindo-se para os engolir.
Não estavam muito longe do areal, mas naquele cenário medonho isso pouco importava. Tão depressa podiam atirar-se para a expectativa de um lençol recolhido, como serem subitamente puxados para o abismo e naufragarem entre os túmulos submersos.
Um relâmpago rasgou o céu, iluminando tudo à sua volta, e ela ficou com a ideia de ter visto um deles atirar qualquer coisa borda fora. Inclinou-se mais para a frente para ver melhor, colada à janela, na altura em que ribombou no ar o trovão denunciado segundos antes, sobressaltando-a. Estava novamente escuro, e deixou de ver.
Arriscou descer novamente as escadas em caracol até lá abaixo. Tim seguiu-a fielmente. O vento uivava atrás das suas costas, perseguindo-a até à grelha. Desta vez não teve tempo de colocar as pedras no devido lugar.
Saiu para o meio da tempestade, acautelando-se para não dar um passo em falso na falésia escorregadia. Segurava o Tim pela coleira, encolhido perante o temporal. Outro relâmpago. Olhando em frente, não viu a embarcação e ficou apreensiva. Apressou-se para o esconderijo que tinha em mente, de onde poderia observar com mais segurança, mas percebeu que não tinha tempo, pois ouviu vozes grosseiras trazidas pelo vento agreste e o Tim rosnou baixinho.
- Fixaste o sítio?
- Sim. - respondera outra voz diferente.
- Amanhã à noite... - o trovão ressoou novamente no céu, com um intervalo mais curto e um som infernal, assustadoramente próximo. O Tim ganiu e recuou um pouco.
- Rápido!... esconder o barco... o Quim... voltamos à mesma hora... resgatar o pacote... puxa desse lado...
Não via nada, estava desprotegida numa área aberta e desorientou-se momentaneamente, o suficiente para sentir medo, apesar de estar com o Tim. Mas para seu alívio as vozes tornaram-se mais soltas, até serem fragmentos impercetíveis.
Mediu rapidamente a situação e pensou que talvez fossem bandidos. Não queria nada dar de caras com aqueles dois na praia! O que quer que fosse que eles andavam ali a aprontar, e àquelas horas, era certo ser ilegal e demasiado perigoso para lidar com isso sozinha.
Deu um ligeiro esticão na coleira do Tim, que ficara mais relaxado à medida que as vozes se perdiam na tempestade, e voltaram para trás, saltando sobre as rochas e sobre as poças da chuva e, mais tarde, deslizando pelas estradas a caminho de casa.
Amanhã chegariam os primos e ela tinha uma história fantástica para lhes contar! Não iam acreditar! Uma nova aventura para se dedicarem em pleno nestas mini-férias. Ia tão entusiasmada a fazer planos que esquecera-se que, amanhã, o mais certo era estar de castigo...

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Definhar imortal

Tinha deixado o carro junto ao muro alto, assaltado de trepadeiras desordenadas. A estrada era muito estreita, quase roçou com o espelho retrovisor nas saliências rochosas ao estacionar.
Para além de não haver luz na rua, a ausência da lua, dissimulada pelas nuvens compactas ou pelo denso arvoredo da serra, não deixava antever muito além.
Ajeitou as pregas do casaco e dirigiu-se à sombra imponente do portão aberto para trás. Os ferros curvavam-se elaboradamente muito lá em cima, mas, apesar disso, não tinha largura suficiente para deixar passar um carro pequeno, o que era diferente e inesperado, pensou pela segunda vez naquela noite. De alguma forma inusitada achou que já deveria saber...
Atravessava agora a entrada fazendo ecoar desarmoniosamente os saltos dos seus sapatos novos na calçada desnivelada. Distinguiu um padrão de vultos, estátuas intercaladas com exuberantes e exóticos vasos abrigando plantas irreconhecíveis, que ladeavam o caminho até à casa principal. Sobre um lanço demorado de escadas, impregnada daquele brilho misterioso, a mansão assemelhava-se a uma severa ruína, apagada...
Não distinguiu nenhum outro som na noite. Os ramos das árvores e os arbustos permaneciam tão estáticos e silenciosos como as petrificadas figuras míticas, gastas, contorcendo-se nos seus pedestais. Talvez mais, até!
Sentiu-se desabrigada e invadida pelo peso esmagador do tempo ali capturado.
Apercebeu-se de mais inexistências naquela noite. Nenhuma luz escapava do interior da casa quando todas as janelas tinham as portadas escancaradas deixando a descoberto os vidros estilhaçados. Não havia brisa, a madeira não estalava, e agora o som dos seus passos fôra subitamente abafado por um troço imprevisível de terra, antes de chegar às colunas que desciam abrutamente do telhado. Quase caiu, quando enterrou os saltos nas fendas da vereda e um dos sapatos saltara-lhe do pé. Quando olhou em volta, à procura, não o encontrou. Ainda se agachou, em vão, apalpando o chão empoeirado, até que decidiu apoiar-se numa das colunas e descalçar o outro sapato. Segurando-o com uma mão subiu a escadaria, contactando com a pedra gelada, incorporando a pulsação inanimada da mármore e escutando as vozes intemporais que nada diziam.
Subitamente apercebeu-se de outra coisa. Se havia muito que não encontrava lugar ali, na imensidão de coisa nenhuma, o mesmo não se podia dizer do cheiro. As múltiplas fragrâncias que lhe chegavam eram intricadas e absorventes, transportando-a para as fronteiras entre o céu e a terra, o dia e a noite, a vida e a morte, se é que sabia alguma coisa sobre isso. Tão facilmente confirmou o cheiro deteriorado e enferrujado da fechadura que encerrava a porta imóvel à sua frente, em tempos pujante e luzidia, como se confundiu com o perfume do lago prateado revestido de nenúfares, a poucos metros dali, nos seus dias jovens, agora reprimindo águas profundamente negras e imperturbáveis.
Perguntou-se se alguém viria recebê-la com a vulgaridade familiar ou se o som oco do batente soaria através dos corredores sombrios até se perder nalguma teia a pender dos lustres baços, fechando-se nos escombros dos armários retorcidos, asfixiando-se num farrapo renunciado de algum vestido.
No fundo sabia, pois sentia a dor da ausência, da fatalidade. O que não sabia era como tinha deixado aquele lugar, em primeiro lugar, mas tinha regressado, disso agora lembrava-se. E lembrou-se de mais, na altura em que uma nuvem obstinada desvendou um luar vermelho de uma noite muito mais antiga, envergando sangue, matizando um corpo violentado deixado ao abandono e perspassando-o enigmaticamente quando, por fim, ela se ergueu, elegante e esbelta como nunca, a poucos quilómetros dali.
Todas as noites regressava a casa pelo mesmo caminho, à mesma hora, como era suposto ter acontecido anos antes. Não via ninguém e nunca ninguém a via. E de todas as vezes que estacava diante da única porta que ansiava abrir, o seu coração emudecido debatia-se perante a desolada evidência do que fôra interrompido, do seu futuro impiedosamente roubado.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

O certo e o errado

No parque de estacionamento ela esperava impaciente, com um nervoso miudinho a aflorar-lhe na pele. Uma lua minguante sorria ironicamente no céu. O que estava ela a fazer?
Os largos anos passados em silêncio, cruzando olhares acanhados e percorrendo os mesmos corredores e cantinas, tinham sido ásperos com eles. Era muito jovem para se conseguir revelar com esplendor e confiança. Nos anos seguintes buscara o conforto e a segurança noutros rostos, mas era o "dele" que ela sempre acabava por encontrar nas almofadas das camas onde se deitava.
Aquela noite tinha um sabor especial, um sabor a certo e a errado, a memórias e ao presente. O futuro não tinha lugar ali. O que ali havia era momentâneo, era volátil, mas era o que ambos precisavam para se libertar dos problemas que tinham deixado em casa. Como tinham conseguido transformar a inocência do que em tempos tinham sentido em algo tão nu e cru? Não interessava... 
Retirou o telemóvel da mala e mandou um sms, provocando-o, impregnando-o de desejo. Ela estava ali, à espera dele, embaciando os vidros com a sua respiração adocicada. "Estou a chegar :)", recebeu de volta. A simplicidade daquelas palavras quebrava-a, numa altura que ela própria já tinha vencido as barreiras da timidez.
O coração parecia saltar-lhe no peito, acelerado, excitado. Passou pouco tempo até ouvir o trinco da porta do lado do passageiro. Ele entrou, inundando o assento com um aroma masculino. Ao fim daqueles anos olhavam-se agora sem receios ou pudores, espicaçando-se e atormentando-se mutuamente. 
Ele aproximou-se demasiado, acariciou-lhe os longos cabelos pretos com determinação e puxou-a para ele, encontrando o corpo dela. No texting que ela lhe tinha mandado, tinha-lhe também dito que estava com frio. Acabava de confirmar as camadas de roupa que tinha para despir. 
Longe dali, num cenário que tinha tudo para ser certo, uma mão delgada amparou uma chucha abafando um ténue choro. Enamorada por dois pequeninos olhos tão brilhantes, protegia aquele frágil ser com mel na voz: "O pai já vem..."

quinta-feira, 5 de abril de 2012

No bosque do tempo

A chuva escorria-lhe pelas costas do cabelo ensopado. O vestido de algodão colava-se-lhe ao corpo, dificultando-lhe os movimentos e até a respirar. Era suposto ter frio, mas não sentia coisa nenhuma. Não sentia nada de nada, a não ser um grande vazio em torno dela. Persistiam apenas os ecos da enxurrada de água abrir poças no terreno plano, perturbar furiosamente o espelho negro da lagoa e despir as árvores da sua frágil vestimenta de Inverno.
Não havia lugar para o sal das lágrimas se misturarem com a água doce que se abatia do negrume do céu, e a manhã já ia avançada. Ele partira fazia algumas horas, as suas pegadas já se tinham apagado com a lama a ser arrastada através dos pés descalços dela, mas ainda não se movera.
Talvez, permanecendo assim imóvel, conseguisse enganar o tempo e manter tudo como dantes. Talvez, se esperasse um pouco mais, o visse retornar com uma fagulha que fosse no olhar, cavalgando ao longe, elegante na sua sela e o som oco dos cascos nos charcos. Talvez acordasse, muito em breve.
Assim esperava, sem pressa, mas com a dúvida e o desolamento a rondar avidamente, também eles expetantes e vorazes para a engolir num covil demasiado fundo e ardiloso. Uma prisão de almas solitárias e errantes. Um leito espinhoso e implacável feito à sua medida.
Pouco a pouco afundava-se no lamaçal, prendendo-se à memória de uma palavra insuficiente e de um olhar fugaz, nem tão pouco uma aproximação que lhe permitisse reter um aroma, uma desejável textura. Então era isto? Era este o sabor do fim?
Fechou levemente a mão e sentiu esse movimento, enferrujado, contrariado. Tinha os dedos frios, dormentes e rijos. Apercebeu-se agora que tremia. Começava a sentir e isso era mais doloroso que tudo o que alguma vez sentira.
Não tinha deixado de olhar em frente, mesmo transportando-se para trás no tempo. Desta vez não viu nenhuma sombra fugidia, nenhum vulto, nenhuma ilusão. De facto, mal conseguia ver um palmo em diante de tão carregada que era tromba de água. Não fazia ideia de quando a chuva daria sinais de tréguas ou de quando um tímido raio de sol encontraria caminho para despontar detrás de uma nuvem cinzenta.
Só estava ela ali, desprotegida perante o poder da natureza. Os animais tinham procurado o refúgio das suas tocas, mesmo aqueles que tinham suspendido a fuga, por breves instantes, para a observar, curiosos. Muito perto dela, sobre uma árvore menos despojada, protegido numa toca, um mocho acordado admirava-a com os olhos semi-abertos. Percebeu, ao mesmo tempo que ela, o movimento das mãos, o girar da roda de fiar e a tapeçaria a começar, e piou, contra todas as expetativas diurnas.
Foi quando ela se voltou e começou a caminhar.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Muros

A cozinha tinha uma luz estranha naquela noite. Lá fora, a lua crescia possante num céu sem estrelas.
Por um lado, o ambiente estava agradavelmente quente e eu deixava-me embalar pela algazarra dos miúdos que, depois de um ano letivo demasiado longo, viam-se agora soltos numa arena aberta, com o mundo pela frente e poucas páginas de vida, escritas com a leveza própria da juventude.
Sentada muito direita na mesa, segurava as mãos uma na outra. Ao centro, o arranjo de flores murchava lentamente. Amanhã traria um ramo de gerânios da praça, anotei mentalmente.
Escutava-o por trás de mim a tirar a chaleira do lume e a dispor calmamente os pratos no balcão. Abriu a porta de um armário, depois outra.
- As chávenas estão à direita. - disse-lhe. Não acertava uma.
Ele não respondeu, nem tão pouco o ouvi suspirar perante o desdém que se conseguia adivinhar no meu tom de voz. Desta vez abriu a porta certa e terminou de fazer o chá, em silêncio. Só se ouvia a noite de verão, e com ela as notas de música que perdêramos em alguma altura.
Quantas mais coisas haveriam ainda por dizer? Verdades egoisticamente camufladas para me proteger. Proteger-me dele ou protegê-lo de mim? Ou protegê-la, a ela... Pensamentos agrestes que me corroíam até lugares insondáveis.
Ele sentou-se à minha frente, com as duas chávenas fumegantes nas mãos, admirando-me com os olhos seguros de um felino, parcialmente cobertos pelo vapor que se elevava do chá. Com aquele olhar de quem continuaria a magoar-me propositadamente ao longo dos anos.
Por fim falou, com uma voz profunda que soaria sempre doce aos meus ouvidos. Perguntou-me, como se isso importasse:
- Queres falar?
Queria. Queria falar tanta coisa. Lutava contra um abismo de palavras com espinhos, pronta para o magoar de volta. Mas não havia forma. Entre nós havia um muro impenetrável, solidificado com o peso e a dureza dos nossos anos em conjunto. Na verdade, não havia nada de novo para dizer. Olhei através da janela, com os meus sonhos projetados para um futuro que já não existia para nenhum dos dois.
- Não. - respondi.

O início

Custa sempre começar um blog. O primeiro post é uma grande responsabilidade. Ele é o prelúdio de algo que se desconhece a sorte, o rumo. Carregado de sentido abre portas que, à partida, não vão dar a lugar nenhum, e vão dar aonde quisermos. É uma meta, mas antes disso é um percurso. É um lar, a expetativa de um porto seguro, uma cabana frágil no meio de uma tempestade, uma labareda numa lamparina diante de uma janela aberta. É tudo aquilo que eu quiser, e tudo aquilo que for entendido por quem aqui veio parar. Por agora, é tudo.