segunda-feira, 9 de abril de 2012

Definhar imortal

Tinha deixado o carro junto ao muro alto, assaltado de trepadeiras desordenadas. A estrada era muito estreita, quase roçou com o espelho retrovisor nas saliências rochosas ao estacionar.
Para além de não haver luz na rua, a ausência da lua, dissimulada pelas nuvens compactas ou pelo denso arvoredo da serra, não deixava antever muito além.
Ajeitou as pregas do casaco e dirigiu-se à sombra imponente do portão aberto para trás. Os ferros curvavam-se elaboradamente muito lá em cima, mas, apesar disso, não tinha largura suficiente para deixar passar um carro pequeno, o que era diferente e inesperado, pensou pela segunda vez naquela noite. De alguma forma inusitada achou que já deveria saber...
Atravessava agora a entrada fazendo ecoar desarmoniosamente os saltos dos seus sapatos novos na calçada desnivelada. Distinguiu um padrão de vultos, estátuas intercaladas com exuberantes e exóticos vasos abrigando plantas irreconhecíveis, que ladeavam o caminho até à casa principal. Sobre um lanço demorado de escadas, impregnada daquele brilho misterioso, a mansão assemelhava-se a uma severa ruína, apagada...
Não distinguiu nenhum outro som na noite. Os ramos das árvores e os arbustos permaneciam tão estáticos e silenciosos como as petrificadas figuras míticas, gastas, contorcendo-se nos seus pedestais. Talvez mais, até!
Sentiu-se desabrigada e invadida pelo peso esmagador do tempo ali capturado.
Apercebeu-se de mais inexistências naquela noite. Nenhuma luz escapava do interior da casa quando todas as janelas tinham as portadas escancaradas deixando a descoberto os vidros estilhaçados. Não havia brisa, a madeira não estalava, e agora o som dos seus passos fôra subitamente abafado por um troço imprevisível de terra, antes de chegar às colunas que desciam abrutamente do telhado. Quase caiu, quando enterrou os saltos nas fendas da vereda e um dos sapatos saltara-lhe do pé. Quando olhou em volta, à procura, não o encontrou. Ainda se agachou, em vão, apalpando o chão empoeirado, até que decidiu apoiar-se numa das colunas e descalçar o outro sapato. Segurando-o com uma mão subiu a escadaria, contactando com a pedra gelada, incorporando a pulsação inanimada da mármore e escutando as vozes intemporais que nada diziam.
Subitamente apercebeu-se de outra coisa. Se havia muito que não encontrava lugar ali, na imensidão de coisa nenhuma, o mesmo não se podia dizer do cheiro. As múltiplas fragrâncias que lhe chegavam eram intricadas e absorventes, transportando-a para as fronteiras entre o céu e a terra, o dia e a noite, a vida e a morte, se é que sabia alguma coisa sobre isso. Tão facilmente confirmou o cheiro deteriorado e enferrujado da fechadura que encerrava a porta imóvel à sua frente, em tempos pujante e luzidia, como se confundiu com o perfume do lago prateado revestido de nenúfares, a poucos metros dali, nos seus dias jovens, agora reprimindo águas profundamente negras e imperturbáveis.
Perguntou-se se alguém viria recebê-la com a vulgaridade familiar ou se o som oco do batente soaria através dos corredores sombrios até se perder nalguma teia a pender dos lustres baços, fechando-se nos escombros dos armários retorcidos, asfixiando-se num farrapo renunciado de algum vestido.
No fundo sabia, pois sentia a dor da ausência, da fatalidade. O que não sabia era como tinha deixado aquele lugar, em primeiro lugar, mas tinha regressado, disso agora lembrava-se. E lembrou-se de mais, na altura em que uma nuvem obstinada desvendou um luar vermelho de uma noite muito mais antiga, envergando sangue, matizando um corpo violentado deixado ao abandono e perspassando-o enigmaticamente quando, por fim, ela se ergueu, elegante e esbelta como nunca, a poucos quilómetros dali.
Todas as noites regressava a casa pelo mesmo caminho, à mesma hora, como era suposto ter acontecido anos antes. Não via ninguém e nunca ninguém a via. E de todas as vezes que estacava diante da única porta que ansiava abrir, o seu coração emudecido debatia-se perante a desolada evidência do que fôra interrompido, do seu futuro impiedosamente roubado.

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