segunda-feira, 7 de maio de 2012

Prisão (3)

Ainda estava congelado de medo perante a voz sobrenatural que soara através das ramagens entrelaçadas da floresta e que, entretanto, se perdera na escuridão. Mas isso não o impediu de recuar com o pânico estampado no rosto ao ver a vegetação afastar-se como que por magia e a abrir caminho, o estritamente necessário para permitir a passagem de um indivíduo franzino.
Um mocho piou ao longe. Depois, silêncio. Absoluto.
Procurou na sua mala uma lanterna e apontou o feixe de luz para dentro do bosque, mas este era tão escuro que engolia a débil iluminação escassos metros adiante.
Ponderou as hipóteses que tinha. Concluiu que a mais sensata seria voltar para trás, pois duvidava até que fosse seguro esperar pelo amanhecer para avaliar se deveria ou não atravessar a orla da floresta. Contorná-la levaria dias. Não tinha provisões suficientes, nem sequer para regressar pelo mesmo caminho, e segundo o mapa que trazia consigo não encontraria nenhuma povoação num raio de, no mínimo, quarenta quilómetros, para qualquer uma das direções. Avançar agora parecia-lhe uma loucura desmarcada!
Pulava de plano em plano, se é que se podia chamar de estratégia a delírios e imprudências, que quase nem deu por um ponto de luz efémero a pairar vindo não sabia de onde, até se deter suspenso no ar alguns passos para dentro do cerrado, para logo, em seguida, recolher-se novamente, lenta e cadenciadamente, afastando-se da entrada.
Iria arrepender-se amargamente, pensava ele quando se atirara para puxar a sua sacola e cruzara a fronteira entre o prado e a floresta, e não demorou muito tempo, pois mal deu dois passos, em segundos os ramos das árvores estenderam-se como braços negros medonhos, bloqueando a fenda no arvoredo que estivera desimpedida momentos antes, tragando-o completamente.
Colocou a mochila às costas com dificuldade, pois o caminho era, tal como imaginara, muito apertado. Roçava nas folhas ásperas como as pedras do deserto e nos galhos rugosos que lhe pareciam inquebráveis de tão duros que eram. Os troncos das árvores eram manchas menos escuras que os ínfimos buracos de negrume que escapavam das ramagens retorcidas e exibiam nódulos e tocas disformes que lhe lembravam rostos defeituosos.
Ali não sentia calor como na vasta planície onde estivera deitado, pelo contrário, arrepiava-se com o bafo fantasmagórico que flutuava à sua volta e lhe trespassava o corpo como o gume de uma lâmina com séculos de história. Não esperava nada diferente, visto que os raios de sol eram imediatamente capturados, impedidos de entrar e iluminar o que não era digno de luz, ou de vida. Ali, o solo era sombrio, carregado e domínio do submundo, os seres não poderiam ser naturais e qualquer vida que pudesse existir seria aquela para além da morte.
Ele consolidava esta certeza à medida que avançava atrás do ponto luminoso; a lanterna tinha falhado quando o caminho se fechara atrás de si, e sabia que continuava a fechar-se enquanto andava, assim como não valia a pena mudar as pilhas, pois nada mundano era suposto funcionar ali.
Tinha a pele do rosto arranhada pelas unhas das árvores e a roupa rasgada em retalhos pelos dedos que o puxavam e tentavam prender. A toda a volta a floresta murmurava, troçando dele como aquela gargalhada que ouvira, parecia-lhe que já noutro tempo. Sentia a cabeça pesada, estava confuso e via tudo à sua volta com pouca clareza. Não sabia o que o impelia a continuar, puxando pelo seu corpo e lutando contra a perversidade daquela natureza sobrenatural.
Foi, então, atirado para o que lhe parecia ser uma enorme clareira fechada sobre si mesma. Percebeu que havia um braço de rio que se circundava a ele próprio, e que as suas águas eram pútridas e tão mortas quanto aqueles bosques. Para dentro, elevava-se um penedo cinzento e no seu cimo jazia um castelo igualmente escuro que parecia ser um prolongamento da própria rocha, mas que se elaborava à medida que crescia, composto por paredes que, em baixo, eram insipidamente despidas e, mais acima, decoradas com janelas excessivamente trabalhadas expondo um minucioso detalhe, e coroado por inúmeras torres pontiagudas.
Não havia forma de transpor o barranco, pelo menos à primeira vista, e se observasse com atenção conseguiria ver que o próprio castelo, prisioneiro da floresta, estava todo ele coberto por trepadeiras selvagens e silvas que eram perfeitas guilhotinas. E ainda recaía sobre aquela construção de outro mundo, uma luz espectral, cinzenta e esverdeada, iluminando ou ocultando a sua silhueta, lançando mais sombras do que clarividência.
A frágil luz que seguira até ali tinha desvanecido diante dos seus olhos, para desvendar com uma perplexidade apavorada aquele cenário abismal. Não acreditava naquilo que os seus olhos viam, apesar de não enxergar ainda em pleno e se debater contra uma mente lenta e tumultuosa, nem no crescente lamento arrastado que subitamente veio de dentro das paredes rudes e maciças do castelo, um choro mórbido e deprimente que galgou o abismo putrefacto de águas imóveis e abalou as fundações da fortificação e a secularidade da floresta que se recolhia o mais que podia...

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