segunda-feira, 14 de maio de 2012

No pântano mal-amado (2)


Numa daquelas noites horrorosas, o duende tinha ido lá para fora sentar-se numa pedra à beira do pântano intoxicado. Tinha as suas curtas pernas estendidas ao luar, como uma criança inofensiva, e assobiava com silvos desengonçados que arranhavam o cérebro.
Estava abafado, como sempre! E cheirava a decomposição. As rãs e os sapos escondiam-se dele no baixo manto de neblina que roçava nas águas negras e lentas, cobrindo o pântano até à altura do seu pescoço. Não queriam ser o seu próximo jantar!
De repente, tudo à sua volta ficou ainda mais silencioso. O duende suspendeu a sua ária agreste e endireitou-se, chacoalhando os velhos ossos. Havia um timbre diferente no ar.
Passado pouco tempo, distinguiu um vulto cinzento ao longe, contornando um tufo alto de ervas ressequidas e seguindo pelo trilho grosseiro por onde já nunca ninguém passava.
Captou o som dos seus passos com as suas orelhas pontiagudas e sorriu com um ar travesso. Ele ouvia melhor que muitos animais!
- Uma pessoa para mim! Toda para mim... - sibilou entre dentes, como uma serpente venenosa.
Atirou-se da pedra para o chão. O salto não era grande, mas ele era muito baixinho, até para um duende. Curvado sob o peso da sua corcunda, correu, parecendo uma cepa torta, para a curva mais adiante que fazia esquina com o antro da sua casa. Ali ficou à espera, deitado debaixo de uma monstruosa raíz, o que lhe pareceu ser uma eternidade!
Até que o som dos passos ficou mais alto, misturando-se com a subtil respiração de quem já caminhava fazia tempo, e ele viu a sombra aparecer, estranhamente mais alumiada pelo luar do que ser ali alguma vez o fora. Sentiu a inveja e o desdém. Mais tarde ajustaria contas com aquela lua empertigada!
Quando o homenzinho estranho passou por cima dele, esticou o pé e deu-lhe um pontapé seco. Este tropeçou e quase jurou que ouvira uma gargalhada trocista. Admirado, olhou em volta. Viu a raíz onde julgara ter prendido o pé e para seu espanto esta parecia encolher-se humildemente. Depois, o duende saltou atrás das suas costas, sobressaltando-o mais uma vez.
Agora sim, estava assustado! À sua frente tinha um ser deveras perturbador, um rosto cheio cravado em cima de um corpo magro e viscoso. Sentiu o cheiro a peixe morto. Repelido pela imagem daquela massa disforme, olhou para os seus pés, desproporcionais ao resto da figura. E aquelas órbitas mais escuras que as águas do pântano, onde vagueava perdido há largas horas desde que enveredara por um atalho, um caminho tão sinistro que - entendia agora - só podia tê-lo guiado para um lugar tão soturno como aquele...
- Estás perdido! Este é um lugar cheio de perigos a esta hora da noite. Anda, vem comigo!
Ouviu a peculiar criatura falar através de uma voz que lhe arrepiou os cabelos. Queria recusar, mas não conseguiu. Os seus olhos pretos cresceram e atraíram-no atrás dela, seguindo-a até ao outro lado da grande árvore onde tinha esbarrado - acreditava ele, ainda...
O duende continuava a falar, aliciando-o com comida para saciar a fome e uma cama para repousar o corpo cansado. Ele tinha acabado de fazer chá e biscoitos, ouvia, uma receita assombrosa da sua avó, "que descanse sem paz!" - teria ele dito?... não... ouvira mal, com certeza!
Viu-o atirar para trás uma porta minúscula cavada no tronco, que o obrigou a dobrar-se quase até ao chão para conseguir entrar. Cheirava pior lá dentro. Viu a criatura dirigir-se a um canto e acender uma vela verde.
- Sê mal-vindo à minha casa! - ele nem percebeu... - Senta-te.
Sentou-se na cadeira que ele virara para si. Ouviu um suspiro quando se sentou, mas não sabia de onde vinha.
O duende tirou um prato sujo da pia onde colocou uns bolos pretos. Serviu-lhe um chá vermelho, que tinha um sabor esquisito. Ainda tinha o travo e a impressão na língua da penugem que sentira.
Naquele momento, tentava descansar num quarto tão pequeno e desarrumado que parecia uma despensa. Não tinha janelas, tal como em toda a casa. E depois de ter apagado a vela - arrependera-se amargamente dessa ação -, a única luz era a dos milhares e insignificantes pares de olhos dos bichos que habitavam nas rugosidades das paredes circulares.
Estranhava, não só, tudo aquilo, como o facto de ter aceite ser levado sem levantar nenhuma questão, desde o momento em que trocara o olhar com o daquele ser que parecia ter saído de um conto de terror. Sentia-se pesado e embriagado, e sabia que não tinha sido do chá, pois já se sentia assim antes de penetrar nas entranhas daquela árvore.
Mas havia mais! Algo que, juntando a toda a excentricidade do que estava a viver, iria impedi-lo de fechar os olhos e de cair num sono atormentado. Deitado sobre um pano velho e amarelado que o seu anfitrião estendera no chão coberto de pó, o seu coração batia no mesmo compasso que o pulsar que pudera distinguir quando o silêncio da madrugada se instalou. Algo se debatia dentro daquela casca intemporal, fluindo nos veios do tronco e animando gradualmente um amaldiçoado estado latente, uma tremenda força que acordava ao fim de tantos e longos anos!

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