quarta-feira, 30 de maio de 2012

No fim do mundo

Kaya vivia no topo de um penhasco, sobre as cristas do mar azul. Naquela zona, o vento chicoteava as praias desertas, os rochedos escarpados e as planícies agrestes, que se estendiam numa circunferência delimitada pelas águas do oceano, uivando desde o amanhecer até de madrugada. Uma ou outra casa despontavam nos campos secos, todas semelhantes entre si, e a parca vegetação que se atrevia a crescer neles resistia aos vendavais e às tempestades que, com frequência, assomavam a região. Não havia muito mais naquele fim de mundo.
Todos os dias, sem exceção, Kaya passava o final de cada tarde debruçada sobre a imensidão que a rodeava, alta e hirta. Determinada a aguardar por algo ou alguém que a levasse para longe, dedicava-se a reviver os seus sonhos, um por um, enquanto o sol se deitava no horizonte e o entardecer lhe gelava a alma.
Não sabia que tipo de embarcação esperar, mas sabia que o seu bilhete de saída viria do mar. Era o que lhe diziam os sonhos, todas as noites, acordando-a para só voltar a adormecer quando o céu se tingia de um tom mais claro. Pouco tempo depois vinha a sua mãe para a despertar.
Quando partisse, os seus pais iriam ficar completamente sós. O seu único irmão tinha desaparecido muitos anos antes, mergulhando no abismo durante uma brincadeira mortal na falésia. O seu pai nunca recuperara da dor, ainda se lançando frequentemente no mar picado dentro de um bote humilde. Ela não sabia o que podia ele estar à procura, depois de todos aqueles anos, mas nunca se atrevera a perguntar. Na verdade, não havia muito que se dissesse ou ouvisse naquela casa, sendo que qualquer tentativa de diálogo caía rapidamente no silêncio, quebrado apenas pelo tilintar da loiça que a mãe se aprontava a arrumar, apesar de nunca haver nada fora do sítio.
Fazia algum tempo que ela soubera que iria partir. Foi quando os seus sonhos começaram, iluminando a única saída possível. Não havia mais nada para ela ali, a não ser um buraco sem fim que a oprimia. Não queria dizer que esta decisão não a magoasse, mas todos os dias já lhe doía a ausência de tudo...
Contemplava, então, as ondas bravias com o verde baço dos seus olhos, que também haviam perdido o brilho, à espera daqueles olhos que tinham voltado a acentuar o azul do mar, dos revoltos cabelos pretos, dos lábios molhados e salgados e daquele abraço compacto onde sentira o seu corpo docemente esmagado sobre o chão áspero do casco do barco. Continuava à espera de tudo aquilo outra vez, desde aquela primeira noite, há catorze luas atrás...

2 comentários:

  1. Parece-me familiar... não tinhas já contado esta história noutro blog antes?
    Estou curiosa por mais... :)

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