sexta-feira, 4 de maio de 2012

Definhar imortal (3)

A noite era de Primavera, mas mais quente, numa antecipação urgente do Verão.
Vinham os dois de um jantar soberbo seguindo-se um espetáculo musical cheio de cor e movimento, que a teria deliciado como mel não fosse a história que aprisionava no peito, atribulada e carregada de pesar. Momentos antes, tinha-o visto formular um pedido de casamento, romântico, doce, com todos os floridos que uma mulher podia desejar. Ela não chegara a dar uma resposta...
Ele conduzia agora em silêncio, uma quietude demasiado pesada para se conseguir ignorar. Enquanto as paisagens fugiam para trás, ela ainda escutava a música inebriada e observava, sem poder contemplar, as personagens pairando sobre o palco, acalmando-a com os feixes de luz de vários tons azuis, uma recordação extraviada na sua consciência insondável.
Respirou fundo, sem antever os minutos que se seguiriam, e falou. Tentou suavizar as palavras, mas não havia como. Elas soariam sempre duras, egoístas, lesivas. Contou-lhe como o tinha traído, revelando-se cruamente, apontando a sua incorreção e a culpa que a consumia. Tinha sido um impulso, um delito, e desejava que não fosse irreversível, por tudo o que tinham conquistado juntos. Se pudesse...
A ausência de som apoderou-se deles novamente, inexorável como um julgamento. Não notou uma desaceleração mínima sequer na condução, nem uma ligeira alteração nos traços que compunham o plácido rosto dele.
Ele escutara-a até ao fim, mas as últimas palavras de indulgência soavam-lhe já remotas, de tal forma o sentimento dúbio crescia dentro dele, esforçando-se por o conter. Diante de si viu a estrada dobrar-se sobre si própria até se desfazer perante os braços penetrantes do arvoredo. Tinha abdicado de tanto, por nada. Lutara contra todos e, mais importante, contra si mesmo, evitando os caminhos tortuosos e estrangulando a sua alma desfolhada e imperfeita, mais do que uma vez. Para nada!
Abrandou e encostou o carro, esforçando-se por erguer a voz no ar.
- Sai.
Havia uma inflexão na voz dele que a fez desviar o rosto, com desdém; mas não dele.
Abriu a porta, aguardando expectante durante um segundo, mas nada mais veio para a confortar, pelo que saiu, deixando-se engolir pela espessura da noite amadurecida.
Estava a pouco menos de um quilómetro de casa, mas era tarde e a noite tinha escurecido ainda mais quando, de forma algo imprevisível, um conjunto de nuvens densas e sobrepostas ocultaram a lua cheia. Os saltos dos seus sapatos no alcatrão amplificavam o silêncio da madrugada, incomodando-a ao ponto de escolher seguir na vala da estrada, apesar de não facilitar a caminhada.
Não olhou para trás, e isso não foi um ato irrefletido, de maneira que quando o toque do seu telemóvel estremeceu o ar e ela demorou a atender - a sua voz diferente, cautelosa, no entanto meiga - não o viu chegar nem previu o gume que perfurara as suas costas, uma, duas e três vezes...
Experimentou a dor dilacerante, a pele rasgar-se como um tecido grosseiro. E depois uma dor seca, quando caiu com um som abafado sobre o silvado. Sentiu algo húmido escorrer, cobrindo-lhe o dorso até se afundar nas fendas da terra, e viu que respirava com dificuldade, absorvendo o cheiro e a textura do pó. Depois a dormência, um piedoso embuste e um alívio amargo, deixando de sentir, primeiro o corpo, depois o chão. Mas ainda ouviu a música ao longe e viu também as cores, e através delas sentiu paz, uma última vez.
Estava um calor estranho naquela noite. A luz da lua desfalecia no céu escuro. Já não viu as mãos que tantas vezes envolvera nas suas afastar-lhe os cabelos desmaiados e roçar-lhe timidamente a face. Não viu, nem sentiu. Assim como não escutou o som dos passos que reconhecia afastar-se com relutância do seu corpo, nem a ignição do motor do automóvel, a dezenas de metros dali, ecoar para dentro do bosque.
Não soube quanto tempo depois se levantou, nem teve consciência do ato em si. Parecia estar um pouco tonta e, além disso, apercebera-se de um retardamento nas suas memórias. Caminhou alheada do mundo em redor, como que impulsionada para um lugar que não sabia qual, tudo lhe parecendo sombriamente distante, a luminosidade lúgrube e fria.
Demorou algum tempo até a melodia soar ténue nos seus ouvidos e ela conseguir captar fragmentos soltos na noite. Tinha a ideia de ter estacionado ali perto. Lembrava-se do muro e das trepadeiras. Mas ainda não sentia nada...

2 comentários:

  1. Epá, eu imaginava mesmo isto! E ainda pede continuidade, sabes, mais uma vez a parte dele...?
    :)
    Brutal!

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    1. Vai continuar! Mas de tive de fazer duas alterações muito discretas no (2), pelo twist.

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