Um conto por dia
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
Fui ali e perdi-me. Talvez tenha sido porque a meio da minha volta pelo guincho saltei a corda do percurso interpretativo para pensar. O sol estava instável mas agradável e a duna onde eu estava recolhida abafava o marulhar. A minha bicicleta estava inserida numa moldura extraordinária. E eu pensei que tudo aquilo me caracterizava tão bem... Escrevinhei na areia a história da minha vida, a mais importante até agora resumida a duas letras, e deixei-a lá a resistir ao vento. Saí a tempo de ver o mau tempo aproximar-se, um cenário que nunca tinha tido oportunidade de ver. Tinha passado o parque de campismo quando começou a carga de água e tinha acabado de virar para dentro de birre quando caiu o granizo e me abriguei debaixo de uns pinheiros. Nessa altura já a água me escorria pelo rosto, o cabelo colava-se à cabeça e toda eu gelava debaixo de roupa encharcada. Mas ninguém alguma vez imaginará a sensação que experimentei, o abeirar-me das personagens e sentimentos místicos que encontramos dentro de páginas demoradas e melancólicas. Se o momento me foi ou não revelador, já não sei. Talvez demore mais tempo que nas histórias...
quarta-feira, 29 de agosto de 2012
A noite é uma criança (6)
As férias vieram e foram, este ano, impregnadas de um cheiro intenso a liberdade, a tempo indeterminado e a horizontes infindáveis. Carregando pequenos luxos que criaram o paraíso, sem esquecer os leves dissabores que bem as caracterizam - não há doce, sem saborearmos antes um pouco do amargo. E os sentidos sendo intensamente despertos: o sal do mar mesclando-se no mel de lábios e o melífluo marulhar espraiando-se sobre as inúmeras texturas de areia, num hino à preguiça de um dia após o outro, tornando-os, no seu conjunto, únicos, mágicos e impagáveis...
Boas férias! Que tenham sido, estejam ou ainda venham a ser do melhor!
O estalar repetiu-se novamente, mais próximo. A sua respiração não se alterou. Silenciosamente, pegou no cabo do punhal e trouxe-o para a ausência do luar. Nessa altura sentiu o chão estremecer, ao mesmo tempo que o ar pesado à sua volta vibrou com o ressoar de ferro a ser arrastado. Um som abafado, que parecia vir debaixo dos seus pés e que conseguiu agitar a sua alma imperturbável.
Depois, silêncio... Era como se a noite tivesse congelado e a sua balada sido banida da face da terra. Até os grilos e os mochos emudeceram.
Ariadne manteve-se imóvel, camuflando-se contra a parede escura e envelhecida do alpendre. Escutou as batidas do seu coração regressarem ao compasso normal e sentiu o sangue fluir, de novo, ordenadamente debaixo da sua pele, mesmo quando voltou a distinguir o estalido de galhos secos ao longo do jardim, desta vez mais distante. O que quer que se aproximara, afastava-se agora, alertado com a presença de algo mais do que tinha previsto.
Mais ansiosa do que nunca permitiu a si própria, forçou-se a aguardar por algum sinal. Estava impressionada consigo mesma. Já não lhe interessava quem reclamara a sua presença, a meio da noite, na ala mais recatada do palácio, depois da ala arruinada. Conseguia delimitar os seus destroços, de onde estava posicionada, uma massa disforme a arranhar o céu sombrio.
Cada mistério a seu tempo, pensou. E esperou... Mas foi com deceção que mais nada viu acontecer durante os longos minutos que se sucederam. Ao final do que lhe pareceu um tempo interminável, decidiu, então, abandonar o seu posto.
Notou que as suas pernas estavam trôpegas, ao cambalear até à janela. No entanto, não se sentia vencida. Logo pela manhã, que não demoraria muito a chegar, procuraria saber mais sobre as galerias subterrâneas do palácio. Sabia que existiam, embora desconhecesse tudo acerca delas.
Entretanto, estaria atenta...
Boas férias! Que tenham sido, estejam ou ainda venham a ser do melhor!
O estalar repetiu-se novamente, mais próximo. A sua respiração não se alterou. Silenciosamente, pegou no cabo do punhal e trouxe-o para a ausência do luar. Nessa altura sentiu o chão estremecer, ao mesmo tempo que o ar pesado à sua volta vibrou com o ressoar de ferro a ser arrastado. Um som abafado, que parecia vir debaixo dos seus pés e que conseguiu agitar a sua alma imperturbável.
Depois, silêncio... Era como se a noite tivesse congelado e a sua balada sido banida da face da terra. Até os grilos e os mochos emudeceram.
Ariadne manteve-se imóvel, camuflando-se contra a parede escura e envelhecida do alpendre. Escutou as batidas do seu coração regressarem ao compasso normal e sentiu o sangue fluir, de novo, ordenadamente debaixo da sua pele, mesmo quando voltou a distinguir o estalido de galhos secos ao longo do jardim, desta vez mais distante. O que quer que se aproximara, afastava-se agora, alertado com a presença de algo mais do que tinha previsto.
Mais ansiosa do que nunca permitiu a si própria, forçou-se a aguardar por algum sinal. Estava impressionada consigo mesma. Já não lhe interessava quem reclamara a sua presença, a meio da noite, na ala mais recatada do palácio, depois da ala arruinada. Conseguia delimitar os seus destroços, de onde estava posicionada, uma massa disforme a arranhar o céu sombrio.
Cada mistério a seu tempo, pensou. E esperou... Mas foi com deceção que mais nada viu acontecer durante os longos minutos que se sucederam. Ao final do que lhe pareceu um tempo interminável, decidiu, então, abandonar o seu posto.
Notou que as suas pernas estavam trôpegas, ao cambalear até à janela. No entanto, não se sentia vencida. Logo pela manhã, que não demoraria muito a chegar, procuraria saber mais sobre as galerias subterrâneas do palácio. Sabia que existiam, embora desconhecesse tudo acerca delas.
Entretanto, estaria atenta...
terça-feira, 24 de julho de 2012
A noite é uma criança (5)
Tabor apoiou as mãos na parede e espreitou para o interior da passagem. Não conseguiu vislumbrar um palmo em diante de tão escuro que estava, não tendo outra alternativa senão prosseguir às cegas, tateando a viscosidade repugnante que se colava à pedra.
Ao mesmo tempo considerou a hipótese de, a qualquer momento, deixar de existir folga de ar se o escoadouro ficasse completamente submerso. Era um cenário sinistro, na verdade! Felizmente que a largura do buraco era mais ou menos a mesma que a do seu corpo, o que lhe dava algum sentido de segurança pois assim seria mais difícil deixar escapar eventuais bifurcações que pudessem existir.
Prosseguiu lentamente, movendo as águas com dificuldade. Com o tempo habituou-se ao cheiro pestilento, mas não conseguia ignorar a frequência com que algo embatia nas suas pernas e que seguia curso atrás de si. Apesar de muito súbtil, era evidente o sentido da corrente na sua direção.
Sentia-se ansioso por ar fresco e também por luz! Perdera, por completo, a noção do tempo e, por pouco, o sentido de orientação. O canal não seguira em frente, como devia ter calculado, mas pelo menos não tinha havido desvios múltiplos e o nível da água baixara francamente. Se não se tinha enganado em nenhuma altura, tinha virado à esquerda e depois à direita, quando sentiu que deixara de seguir em linha reta, curvando ligeiramente no sentido nordeste, achava ele... Já devia ter atravessado as muralhas há muito tempo, seguindo agora para o pátio exterior ou, quem sabe, para o interior do próprio palácio!
Ouviu, então, o som de água a cair. Um gotejar espesso que ecoava à sua volta. Quase instantaneamente, bateu com o pé em algo duro, e que identificou de imediato como sendo uma parede. Parecia que chegara a um beco sem saída.
Tabor estava confuso. Não tinha chegado até ali para nada! E ainda havia a questão do som da água a cair por resolver...
Percorreu com as mãos toda a extensão da parede à sua frente e as laterais, procurando a origem do escoamento. Foi no teto que descobriu uma espécie de grelha, por onde podia enfiar-se tendo em conta o tamanho do buraco. Empurrou-a, embora com pouca fé, e surpreendeu-se quando sentiu a grade ceder uns milímetros. Mais animado forçou-a com vários movimentos bruscos, conseguindo finalmente que esta se soltasse.
O estrondo ecoou por todo o lado, sobre a sua cabeça, deixando-o, de certa forma, inquieto. Só depois de alguns minutos na expetativa é que achou seguro empoleirar-se pelos braços e elevar-se pela abertura.
Lá em cima continuava escuro como breu, mas sentia que a galeria era agora bem maior, a julgar pela amplitude do eco que se propagava.
Sabem uma coisa? Estou completamente perdida! Depois de arejar um pouco voltarei para tirar o Tabor desta embrulhada...
Ao mesmo tempo considerou a hipótese de, a qualquer momento, deixar de existir folga de ar se o escoadouro ficasse completamente submerso. Era um cenário sinistro, na verdade! Felizmente que a largura do buraco era mais ou menos a mesma que a do seu corpo, o que lhe dava algum sentido de segurança pois assim seria mais difícil deixar escapar eventuais bifurcações que pudessem existir.
Prosseguiu lentamente, movendo as águas com dificuldade. Com o tempo habituou-se ao cheiro pestilento, mas não conseguia ignorar a frequência com que algo embatia nas suas pernas e que seguia curso atrás de si. Apesar de muito súbtil, era evidente o sentido da corrente na sua direção.
Sentia-se ansioso por ar fresco e também por luz! Perdera, por completo, a noção do tempo e, por pouco, o sentido de orientação. O canal não seguira em frente, como devia ter calculado, mas pelo menos não tinha havido desvios múltiplos e o nível da água baixara francamente. Se não se tinha enganado em nenhuma altura, tinha virado à esquerda e depois à direita, quando sentiu que deixara de seguir em linha reta, curvando ligeiramente no sentido nordeste, achava ele... Já devia ter atravessado as muralhas há muito tempo, seguindo agora para o pátio exterior ou, quem sabe, para o interior do próprio palácio!
Ouviu, então, o som de água a cair. Um gotejar espesso que ecoava à sua volta. Quase instantaneamente, bateu com o pé em algo duro, e que identificou de imediato como sendo uma parede. Parecia que chegara a um beco sem saída.
Tabor estava confuso. Não tinha chegado até ali para nada! E ainda havia a questão do som da água a cair por resolver...
Percorreu com as mãos toda a extensão da parede à sua frente e as laterais, procurando a origem do escoamento. Foi no teto que descobriu uma espécie de grelha, por onde podia enfiar-se tendo em conta o tamanho do buraco. Empurrou-a, embora com pouca fé, e surpreendeu-se quando sentiu a grade ceder uns milímetros. Mais animado forçou-a com vários movimentos bruscos, conseguindo finalmente que esta se soltasse.
O estrondo ecoou por todo o lado, sobre a sua cabeça, deixando-o, de certa forma, inquieto. Só depois de alguns minutos na expetativa é que achou seguro empoleirar-se pelos braços e elevar-se pela abertura.
Lá em cima continuava escuro como breu, mas sentia que a galeria era agora bem maior, a julgar pela amplitude do eco que se propagava.
Sabem uma coisa? Estou completamente perdida! Depois de arejar um pouco voltarei para tirar o Tabor desta embrulhada...
segunda-feira, 23 de julho de 2012
O lago
Ouvia a música das cotovias enquanto os seus passos soavam secos na ponte sobre o lago. Os reflexos da água moviam-se ao longo do caminho, através das suas vestes claras, esbatendo-se no seu rosto e olhar profundo.
Chegou ao arco sob a imensa copa de um carvalho e parou, escutando o seu coração mudo e ignorando o cair das folhas à sua volta. Sentou-se no muro baixo à beira de uma suave cascata e permitiu-se absorver a melancolia do Outono. O Verão tinha sido tudo menos leve, levando consigo as esperanças que ela reunira com o florir das margaridas, no pátio da sua casa.
Tinha acabado de fazer dezasseis anos. Não era mais nenhuma criança, mas ninguém a tratava de outra maneira. Na verdade, queria ser como as suas irmãs e ter tantos pretendentes quanto os pequenos peixes que observava nadarem de um lado para o outro, debaixo dos seus pés.
Não herdara a beleza da sua mãe, mas o seu pai elogiava-a pela sua bondade. Quando o fazia, via-o entristecer-se e, logo em seguida, afastar-se. Isso magoava-a, apesar de sentir a dor dele como se fosse sua. Ela nunca conhecera a mãe...
As irmãs tinham os olhos verdes, mas os dela eram de um castanho escuro. A sua cabeleira ruiva não era tão longa e brilhante, pelo que na maioria das vezes usava-a enrolada num carrapito. Não sabia andar com graça ou lançar um sorriso atraente e odiava o seu rosto pálido salpicado de sardas, que lhe davam um ar infantil.
Suspirando como se exilasse um grande peso vindo de dentro, fez um gesto para arremessar uma pedrita ao lago, mas ficou de braço suspenso no ar ao reparar numa pequena embarcação branca que vinha na sua direção. Uma misteriosa neblina avançava na retaguarda.
À medida que o barco se aproximava, conseguiu ver que não trazia ninguém, navegando livremente e sem rumo, sabia-se lá há quanto tempo. Levantou-se e colocou-se de pé sobre o muro. Esperou que este passasse debaixo dela e, com um impulso, saltou lá para dentro. Sabia que este era um dos motivos pelo qual nunca a levavam a sério...
A embarcação balançou sobre a água, mas conseguiu equilibrar-se. Reparou, então, que não havia remos, nem sequer sinais de alguma vez ter transportado alguém. Uma sensação estranha invadiu-a, especialmente quando as brumas a engoliram e se adensaram em torno de si própria.
Rapidamente deixou de conseguir ver a ponte, o lago e as suas margens, e o som da queda de água, do chilrear e da brisa que desfolhava as árvores foi lentamente abafado até desaparecer. O silêncio tornou-se esmagador e uma dor de cabeça lancinante forçou-a a fechar os olhos até as suas forças se esvaírem e ela cair desmaiada como uma pedra lançada ao lago...
Chegou ao arco sob a imensa copa de um carvalho e parou, escutando o seu coração mudo e ignorando o cair das folhas à sua volta. Sentou-se no muro baixo à beira de uma suave cascata e permitiu-se absorver a melancolia do Outono. O Verão tinha sido tudo menos leve, levando consigo as esperanças que ela reunira com o florir das margaridas, no pátio da sua casa.
Tinha acabado de fazer dezasseis anos. Não era mais nenhuma criança, mas ninguém a tratava de outra maneira. Na verdade, queria ser como as suas irmãs e ter tantos pretendentes quanto os pequenos peixes que observava nadarem de um lado para o outro, debaixo dos seus pés.
Não herdara a beleza da sua mãe, mas o seu pai elogiava-a pela sua bondade. Quando o fazia, via-o entristecer-se e, logo em seguida, afastar-se. Isso magoava-a, apesar de sentir a dor dele como se fosse sua. Ela nunca conhecera a mãe...
As irmãs tinham os olhos verdes, mas os dela eram de um castanho escuro. A sua cabeleira ruiva não era tão longa e brilhante, pelo que na maioria das vezes usava-a enrolada num carrapito. Não sabia andar com graça ou lançar um sorriso atraente e odiava o seu rosto pálido salpicado de sardas, que lhe davam um ar infantil.
Suspirando como se exilasse um grande peso vindo de dentro, fez um gesto para arremessar uma pedrita ao lago, mas ficou de braço suspenso no ar ao reparar numa pequena embarcação branca que vinha na sua direção. Uma misteriosa neblina avançava na retaguarda.
À medida que o barco se aproximava, conseguiu ver que não trazia ninguém, navegando livremente e sem rumo, sabia-se lá há quanto tempo. Levantou-se e colocou-se de pé sobre o muro. Esperou que este passasse debaixo dela e, com um impulso, saltou lá para dentro. Sabia que este era um dos motivos pelo qual nunca a levavam a sério...
A embarcação balançou sobre a água, mas conseguiu equilibrar-se. Reparou, então, que não havia remos, nem sequer sinais de alguma vez ter transportado alguém. Uma sensação estranha invadiu-a, especialmente quando as brumas a engoliram e se adensaram em torno de si própria.
Rapidamente deixou de conseguir ver a ponte, o lago e as suas margens, e o som da queda de água, do chilrear e da brisa que desfolhava as árvores foi lentamente abafado até desaparecer. O silêncio tornou-se esmagador e uma dor de cabeça lancinante forçou-a a fechar os olhos até as suas forças se esvaírem e ela cair desmaiada como uma pedra lançada ao lago...
terça-feira, 17 de julho de 2012
A noite é uma criança (4)
Demorou cerca de duas horas até chegar junto dos portões. Estava muito frio, mas só quando se viu tão perto do negrume daquela estrutura é que sentiu o corpo arrepiar-se. Mais próximo do que tinha previsto, percebeu o movimento de um guarda, apenas. Felizmente que este parecia estar muito relaxado, para não dizer distraído. Pensou que não era hábito acontecer muita coisa por ali, o que não o surpreendeu...
Recolheu-se nos arbustos despidos de folhagem. Por um lado, deu graças pela lua não ter aparecido, mas por outro, estava inquieto. Não era bom presságio quando na noite anterior tinha estado lua cheia.
Tinha ouvido falar de algumas incoerências e ambiguidades em relação àquele sítio, histórias nebulosas e de deixar os cabelos em pé, especialmente desde que ocorrera a queda daquela ala do palácio.
Perguntou-se sobre o que acontecera depois disso. Das histórias que ouvira restavam agora meros fragmentos, não só porque ele era novo quando as conheceu, mas também porque ninguém tinha certezas de nada. Provavelmente muito do que ouvira tinham sido especulações, resultado da imaginação e fantasia de quem as contava, e depois de quem as ouvia para as reproduzir ao seu jeito. Lembrava-se de uma sombra de algo nas ruínas, um padrão que se repetia todos os anos no aniversário da princesa, crianças que desapareciam, homens que partiam para não voltar e mulheres abandonadas que votaram a sua vida ao esquecimento... Tabor também tinha dúvidas sobre se seriam memórias ou criações do seu próprio espírito inventivo nas várias madrugadas que se seguiram. Mas depois de aqui chegar, e de se deparar com um reino que parecia não existir, deixou de saber o que pensar.
O palácio estava muito exposto. Só conseguira ali chegar sem ser visto pelas condições do céu noturno e, aparentemente, pela escassa guarda real, mas não queria arriscar contornar as muralhas pois a vegetação terminava junto da vala pedregosa em redor e os terrenos além dela pareciam inóspitos e demasiado descobertos.
Estava a sondar as possibilidades que tinha quando ouviu um bater de asas e viu um corvo, tão negro quanto aquela estranha noite, esvoaçar sobre as elevadas paredes e desaparecer. À medida que seguia o voo selvagem da ave, o seu olhar decaiu mais abaixo, à altura da superfície das águas da vala, e distinguiu uma sombra mais escura que a escuridão da pedra.
O fosso era estreito e ele estava suficientemente perto para se sentir nauseado pelo cheiro das águas paradas à demasiado tempo, pelo que ainda conseguiu diferenciar, uns bons palmos acima, as marcas anteriores do nível normal, e percebeu que estavam agora muito abaixo dele. Tabor já tinha dado conta do período de seca que aquela região atravessava pelo leito do rio que descia a encosta a Oeste. As chuvas e as neves que em breve viriam seriam muito bem vindas, embora ainda não soubesse por quem...
Voltou o seu pensamento para a mancha escura que tinha acabado de detetar. Tinha uma ideia sobre o que poderia ser, mas para confirmar teria que descer o fosso e entrar naquelas águas sombrias. A imagem enregelava-o ainda mais, e não era só por considerar a sua baixa temperatura. Afinal não é que tivesse outra alternativa, a menos que quisesse regressar, o que estava longe de ser uma opção!
Agachou-se até ficar estendido no chão e arrastou-se silenciosamente até o terreno inclinar-se sobre o fosso. Chegado aí, colocou-se na vertical e foi descendo, apoiando os pés e as mãos nos socalcos que foi encontrando. Não foi tarefa difícil porque o fosso não era muito íngreme, mas assustava-o a ideia de alguma pedra resvalar, denunciando-o. Teve sorte...
Um dos seus pés mergulhou, então, na água. Não tinha sequer chegado perto da realidade sobre quão gelada estava, e também da sua viscosidade. Sentiu repulsa a ponto de vomitar, mas conseguiu conter-se. O que via de positivo nisso era talvez o som abafado ao mover-se.
Desejou não ter mais surpresas, fossem quais fossem, e afastou do pensamento a ideia de um bicho qualquer que o puxasse para as profundezas do fosso, mas rapidamente percebeu que o nível das águas dava-lhe pela altura do peito. Mais uma vez pensou que as defesas do palácio estavam muito lassas, mas ao mesmo tempo também especulou sobre a necessidade delas existirem. Viveria algum mal terrífico dentro daquelas paredes?
Finalmente, chegou à muralha. Olhando debaixo para cima concluiu que era vertiginosa! Sentiu-se muito pequeno e submisso, como quando estava no sopé da colina a admirar a silhueta do palácio em contraluz, mas ao verificar que afinal estava certo quanto à origem daquela sombra escura na base da muralha, sentiu também uma ponta de excitação duvidosa. Ali estava, diante dele, o seu bilhete de entrada para uma aventura de onde podia não regressar...
segunda-feira, 9 de julho de 2012
A noite é uma criança (3)
O seu nome era Tabor e ouvira falar sobre ela há muito tempo atrás, ainda ambos eram crianças. Uma princesa que nascera num país distante, o último a Norte antes das Terras Geladas, na noite mais curta e gelada do ano, ao mesmo tempo que acontecia uma terrível tempestade que devastara parte do reino e arruinara completamente toda a ala nordeste do palácio que, por motivos desconhecidos, ficara vedada desde então.
O que a tornava especial e distinta de todas as outras raparigas, para além do berço real, era a sua beleza crua e inigualável. Era a única filha de um rei sem rainha, desde que a sua esposa definhara no leito decorrente de uma doença forasteira. A partir desse desolado acontecimento, o rei enclausurara-se na sua dor e Ariadne crescera sem pai e sem mãe, apenas com várias aias à sua volta para suprir todas as suas necessidades e vontades, tornando-a numa pessoa fria e aparentemente sem coração.
Quando Tabor atingiu a idade adulta, partiu sem dar justificações. Não tinha pais, apenas um tio muito afastado que nunca lhe dera muita importância. Assim, numa madrugada aleatória, deixou o deserto em busca das histórias que o embalaram nas noites quentes, sob as estrelas, muitos anos antes. Contos que o deixaram acordado muitas delas a imaginar a beleza incomparável de uma rapariga que ainda nem era uma mulher e já deixava muitos homens a falar.
Mas nem tudo era em bonança... Havia um lado sombrio dessas histórias, e que ninguém nunca soubera desbravar adequadamente. Descreviam uma beleza negra intocável, capaz de aniquilar a alma humana. Depois, as vozes emudeciam, deixando cair no esquecimento as outras que se levantavam timidamente para colocar algumas questões: "como?", "e mais?"... Alguém suspirava, vultos acomodavam-se nas suas peles e pouco tempo depois ouviam-se os roncos de quem caía no sono.
Até que as histórias deixaram se ser contadas e o povo esqueceu-as. Tabor ficou sem saber se tinham sido produto da imaginação de alguém, mas ele imortalizara a imagem dela e nunca foi capaz de a esquecer...
A incrível jornada que empreendera foi longa. Muitas luas passaram, viu e sentiu as estações mudarem até voltarem a ficar menos percetíveis, com a diferença de que os dias e as noites eram mais gelados do que no seu país. Atravessou dunas, comeu o pó dos trilhos, embrenhou-se nos perigos das florestas, percorrendo a maior parte do caminho em solidão, ele e os animais, até chegar a povoações onde não se permitiu demorar muito tempo. Fez as perguntas que tinha a fazer, sem se alongar em detalhes. Teve ofertas para passar as noites acompanhado, algumas que recusou, outras não, mas no fundo nunca deixara de se sentir ausente, partindo na maioria das vezes enquanto todas elas ainda dormiam, para conhecer novas terras, novas gentes e novas mulheres, e para partir novamente, uma e outra vez.
Os dias já se notavam mais curtos, e foi numa das poucas manhãs solarengas, próximo do fim da sua aventura, que viu o palácio reluzir ao longe, no topo de uma colina que se preparava para receber as neves da próxima estação. Um pequeno bosque empobrecido flanqueava as suas muralhas e, por detrás, viam-se as crinas alvas de uma montanha que fazia fronteira com as Terras Geladas, onde poucos se aventuravam pela rigorosidade do Inverno permanente e das suas tempestades.
As histórias eram, então, verdadeiras! - pensou, em voz alta.
Admirou as paredes e as torres altas do palácio, os arcos, as abóbodas, os telhados e as varandas. Arquitetura simples mas pretensiosa, até o seu olhar cair nas ruínas a nordeste, o que deduziu ser a ala que ficara destruída quase duas décadas antes.
Deixou-se ali ficar o resto do dia, numa pequena clareira junto a um braço do rio, até anoitecer. Quando a lua apareceu decidiu-se a pegar nos seus parcos pertences e avançou como uma sombra junto ao arvoredo, que ia ficando cada vez mais rasteiro, e que ladeava uma planície até ao sopé da colina onde se edificava o palácio.
Aquele cenário não fazia sentido, a começar por não haver reinado ou cidade ou coisa alguma sobre que reinar...
sexta-feira, 22 de junho de 2012
A noite é uma criança (2)
Ela era uma princesa da noite e vivia num antigo palácio na encosta de uma colina. O seu destino para todas as madrugadas era um alpendre abobadado, cujas paredes revestiam-se de murais esbatidos pelo tempo.
Depois de todos na casa se recolherem para os seus aposentos, incluindo as aias que dormiam no quarto ao lado, Ariadne levantava-se da sua cama e escapava-se para os corredores silenciosos, percorrendo-os, sempre com a graciosidade com que era conhecida, até à grande janela que emoldurava toda a parede a sul.
Conhecia todas as formas de brisa noturna que a envolviam quando abria os vidros e pisava as lajes do chão com os seus pés descalços. E encostada ao gradil florido, sustentado por colunas tão lisas quanto os seus dias eram monótonos, envergando uma fina capa de tecido sobre o seu corpo esguio, permitia ao luar curvar-se perante o seu encanto gelado...
Numa dessas noites, a lua não apareceu, escurecendo tudo em redor. O céu parecia limpo e as estrelas cintilavam como em todas as noites ancestrais.
Daquela única vez, Ariadne trazia um punhal à cintura e aguardava pacientemente recolhida nas sombras do alpendre.
Esperou até escutar o som de um galho a quebrar no jardim, próximo dali, e, instintivamente, tocou na lâmina por baixo das suas vestes. Nunca a tinha utilizado. Não sentia medo. Não sentia coisa alguma... Chamavam-lhe A Princesa da Noite, fria e dura como eram as noites no Norte. Os seus olhos negros eram glaciais e implacáveis, forçando cada homem ou mulher que a enfrentasse a subjugar-se a ela. Não havia nada que não fosse feito à sua vontade.
Ao final da tarde daquele dia, ao mesmo tempo que os raios dourados do sol se escapavam do prado, recebera uma visita na varanda da janela do seu quarto. Sentada numa cadeira, diante do seu reflexo imparcial, viu chegar um corvo, pousando no peitoril e virando os olhos inquietos na direção dela. Ao aproximar-se viu que a ave não fugira, enfrentando e igualando a escuridão do seu olhar. Duas criaturas da noite, tão longe do lugar onde pertenciam...
Quando abriu a portada percebeu que trazia um bilhete preso numa das patas. Levantou a mão, devagar, e a ave voou inesperadamente para o seu braço. Depois de a deixar desatar o papel da sua pata, o corvo levantou novamente voo, não sobre as árvores, mas embrenhando-se nas suas ramagens. Por momentos, parece-lha que esta afrouxara o voo como se fosse deter-se sobre algo, ou alguém...
Olhava agora para o bilhete que tinha desenrolado entre os seus dedos, cuja mensagem era apenas um local e hora.
E ali estava ela, como em todas as noites e como em nenhuma delas, à espera, aconchegando-se no gume do seu punhal de encontro às suas coxas...
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